Marcelino Freire

Há muitos anos coordenando oficinas de criação literária, o escritor Marcelino Freire é um provocador. Suas provocações tem ajudado a tirar da “gaveta” muitos projetos de livros dos mais diversos gêneros por todo o país.

MARCELINO FREIRE é pernambucano como Manuel Bandeira. O escritor, poeta enorme, nasceu em Sertânia-PE em 67, um ano antes do ano que nunca acabou. 

A construção da vida se deu nos anos em que o Brasil vivia sob o regime militar. Entre 1969 e 1975, mora em Paulo Afonso, Bahia. Depois, reside em Recife, onde tem contato com grupos de teatro e leituras de poesias. Sua primeira peça, escrita aos doze anos, “O Reino dos Palhaços, é encenada em 1981. 

Dez anos depois, muda-se para São Paulo. Em 1995, edita, de forma independente, seu primeiro livro de contos, AcRústico. Cinco anos depois, lança Angu de Sangue, com prefácio do crítico João Alexandre Barbosa (1937-2006). Em 2002, a Ateliê Editorial publica o livro de aforismos EraOdito, seguido de outros volumes de contos: BaléRalé (2003), Contos Negreiros(2005) e Rasif: Mar que Arrebenta (2008). Ainda em 2002, inaugura o selo EraOdito EditOra e lança a Coleção 5 Minutinhos, reunindo narrativas curtas inéditas dos escritores Glauco Mattoso (1951) e João Gilberto Noll (1946-2017). 

Há muitos anos coordenando oficinas de criação literária, o escritor Marcelino Freire é um provocador. Auto-definido “agitado” cultural, mais que um agitador, tem ajudado a tirar da gaveta muitos projetos de livros nos gêneros mais diversos por todo país. 

A edição brasileira pela Editora Kapulana de Sangue Negro da mãe dos poetas moçambicanos, Noémia de Sousa contou com sua colaboração. 

Isso se deve aos encontros promovidos na Balada Literária, evento que, desde 2006, reúne escritores, nacionais e internacionais, pelo bairro paulistano da Vila Madalena.  

Marcelino é um dos integrantes do coletivo EDITH, pelo qual lançou, em julho de 2011, o livro de contos Amar É Crime. No final de 2013, publicou seu primeiro romance, intitulado Nossos Ossos (Record), com o qual ganhou o prêmio Machado de Assis 2014 de Melhor Romance pela Biblioteca Nacional. 

Freire compartilha com os participantes de suas oficinas – seus “parceiros de escrita” – aquilo que a prática, para ele, tem ensinado: “livro bom é livro em movimento”. Tocar em frente é o segredo, afirma. Citando a escritora Clarice Lispector, “escrever se aprende escrevendo”. 

É autor do premiado Contos Negreiros (Editora Record – Prêmio Jabuti 2006). Em 2004, idealizou e organizou a antologia de microcontos Os Cem Menores Contos Brasileiros do Século (Ateliê). Alguns de seus contos foram adaptados para teatro.   

CONTOS NEGREIROS

Tendo como inspiração autores clássicos brasileiros como Cruz e Sousa, Lima Barreto e Jorge de Lima, Marcelino faz uma releitura moderna do preconceito, mas não só mais o racial – nos quinze ‘cantos’ deste volume, ele também esquadrinha, com ironia e humor, questões como homossexualismo e conflito de classes. 

Um conto de Marcelino

Totonha

 Capim sabe ler? Escrever? Já viu cachorro letrado, científico? Já viu juízo de valor? Em quê? Não quero aprender, dispenso. 

Deixa pra gente que é moço. Gente que tem ainda vontade de doutorar. De falar bonito. De salvar vida de pobre. O pobre só precisa ser pobre. E mais nada precisa. Deixa eu, aqui no meu canto. Na boca do fogão é que fico. Tô bem. Já viu fogo ir atrás de sílaba? 
O governo me dê o dinheiro da feira. O dente o presidente. E o vale-doce e o vale-lingüiça. Quero ser bem ignorante. Aprender com o vento, ta me entendendo? Demente como um mosquito. Na bosta ali, da cabrita. Que ninguém respeita mais a bosta do que eu. A química. 
Tem coisa mais bonita? A geografia do rio mesmo seco, mesmo esculhambado? O risco da poeira? O pó da água? Hein? O que eu vou fazer com essa cartilha? Número? 
Só para o prefeito dizer que valeu a pena o esforço? Tem esforço mais esforço que o meu esforço? Todo dia, há tanto tempo, nesse esquecimento. Acordando com o sol. Tem melhor bê-á-bá? Assoletrar se a chuva vem? Se não vem? 
Morrer, já sei. Comer, também. De vez em quando, ir atrás de preá, caruá. Roer osso de tatu. Adivinhar quando a coceira é só uma coceira, não uma doença. Tenha santa paciência! 
Será que eu preciso mesmo garranchear meu nome? Desenhar só pra mocinha aí ficar contente? Dona professora, que valia tem o meu nome numa folha de papel, me diga honestamente. Coisa mais sem vida é um nome assim, sem gente. Quem está atrás do nome não conta? 
No papel, sou menos ninguém do que aqui, no Vale do Jequitinhonha. Pelo menos aqui todo mundo me conhece. Grita, apelida. Vem me chamar de Totonha. Quase não mudo de roupa, quase não mudo de lugar. Sou sempre a mesma pessoa. Que voa. 
Para mim, a melhor sabedoria é olhar na cara da pessoa. No focinho de quem for. Não tenho medo de linguagem superior. Deus que me ensinou. Só quero que me deixem sozinha. Eu e minha língua, sim, que só passarinho entende, entende? 
Não preciso ler, moça. A mocinha que aprenda. O doutor. O presidente é que precisa saber o que assinou. Eu é que não vou baixar minha cabeça para escrever. 
Ah, não vou. 

Oficina Literária

Marcelino coordena oficinas de criação literária desde o ano de 2003. Tocar em frente é o segredo, afirma. Citando a escritora Clarice Lispector, “escrever se aprende escreven