Compositor, intérprete e multi-instrumentista, o poeta paulista passeia da literatura à canção com originalidade e expressão.

A poesia de gracco

Gracco tem a manha de arrancar as palavras dos dicionários, mesclá-las aos neologismos das quebradas e traduzir, sob um ritmo encadeado de idéias que abrem cadeados, o encontro, o deleite, o desafio e a música.
 
Compositor, intérprete e multi-instrumentista, o poeta paulista passeia da literatura a canção com originalidade e expressão.
 
Cativante e instigador, Gracco sabe costurar um papo, pôr a alma em uma alegria alerta e desnudar a palavra em suas performances, quer na música quer em suas declamações. 

HÉRNIA

a luz que habita a caneta

é pouca pra escrever manhãs
 
era negra
a neve que caía
 
 
onde as palavras ardem em despedaços
todo verso é crasso
e as letras
maltrapilhas
se flagelam
 
abandona ali tua boca imunda de meiguices

A VOZ DE TUDO

[ pequenos pássaros ]

                                              hoje ela almoçou três maços de cigarro há dias trancada em casa anda descalça pisando em papéis pincéis telas e pontas de cigarro louca há dias em casa a ninguém dar um oi uma notícia dias sem se perguntar se o sol inda existia hoje noite contínua e ela nua a se debater entre as paredes hoje de si sua pele os ouvidos gritando e os olhos aquarelados dilatando as cores hoje os namorados o ex e o atual telefonaram alguém tocou a campainha hoje ela não atendeu não abriu hoje ela não atenderia como há dias hoje ela profetizou fotografias ela já o via há dias já o via hoje ela pintou o rosto de um menino hoje ela pintou um roxo rosto de menino ela rasgou desenhos ela refez nuns riscos a letra do reggae que escutava com pincel na mão e a parede entupida de sua voz enquanto na tela surgia o rosto roxo de um menino ela escrevia na barriga e ria ela escrevia roxo um nome ela suava ela dizia um nome e cantava roxo um rosto um menino um nome escrito na barriga dançando dentro dela e ela dançou para o menino que na tela ria roxo olhando para ela ela dançou sobre os cacos dos copos e das garrafas ela olhou longamente os olhos do menino hoje ela lembrou ela tremia ela com febre ela chorando sorrindo tocando leve o rosto do menino na tela hoje o telefone tocou a campainha hoje ela lembrou o próprio nome hoje sorrindo pro menino ela cravou com força na dobra do braço esquerdo um pedaço pontiagudo de um gargalo lambuzou no sangue os dedos e teve tempo de escrever no chão:  
“don’t worry”.

O HÁLITO PODRE DE DEUS

: outra coisa

o casal feio se quer chic e escolhe cuidadosamente a roupa cara e chiquérrima que nunca será paga que os cartões sempre pra sempre todo mês e o banco de horas as horas extras o trabalho extra e ordinário ordinária vidinha do casal feio que hoje vão ao chópim o casal e o filho único por enquanto que o casal sonha com uma família imensa ao redor de uma mesa imensa cheia de flores e margarina

 
e enquanto sonham ela ajeita muito bem os cílios a cintura os seios ele desarruma cuidadosamente a camisa e os cabelos que além de chic esse é um casal que se quer descolado e o filho do casal feio é bonitinho como toda criança feia é um sobrevivente e a voz agudagrave ao mesmo tempo é quase um adolescente e bate o pé e diz que é pré adolescente não criança e odeia ser tratado como criança odeia a camisa xadrez igual do pai por dentro da calça e o cabelo penteado cuidadosamente pela mãe e lá se vão
 
lá se vai o casal e o filho vai mamãe pensando em perfumes e sapatos e papai pensando em bifes e cervejas e o filhinho pensando em tacar fogo no papai na mamãe nas camisas nos suspensórios nas roupinhas caras e chiquérrimas que nunca serão pagas e no caminho um semáforo e o carro que nunca será pago pára e fora o adesivo do desenho da família que se quer feliz além de chic e descolada e o casal dentro discute
 
e as vozes ganham volume maior que o da música que toca na rádio que toca o melhor da moderna música e diz eu quero você como eu quero e ele e ela não ouvem a canção sem sal a voz cheia de açúcar da cantora sem sal não ouvem o que ela e ele não falam e deixam de ver a menina moça ali cuspindo fogo jogando tochas e os olhos do filhinho se enchendo de um brilho muito perigoso vendo malabarisado o sorriso o rosto da menina moça iluminada pela dança das chamas no ar
 
e o carro que agora estacionado e o casal tenta sorrir olhar em volta como distraído como se não o que se calou não houvesse o que se ouviu o que se acha que ouviu e o filho vê que caras altos negros largados de roupas largas cheios de tatuagens falando alto de um jeito estranho andando com o peito pra frente os joelhos inclinados e balançando muito os braços não agradam papai não alegram mamãe e papai e mamãe torcem o nariz ao ver os caras e concordam que aqueles caras não deveriam estar naquele chópim chiquérrimo e comentam qualquer coisa voltando o olhar pra vitrine e evitando olhar nos olhos um do outro e mamãe olha os olhos do vendedor e gosta muito e papai também mas seriam incapazes de dizer isso e isso o filhinho não nota
 
e isso de papai e mamãe não gostarem dos caras faz o filhinho gostar dos caras quase tanto quanto gostou da menina que cuspia fogo e bem menos do que gostou do outro menino ali lambendo lambuzando a cara no sorvete e o filho do casal feio achou bonito e quis sorvete pediu pra papai que comprasse mas queria mesmo era lamber o rosto lambuzado do menino e pensando em sorvete e no menino e nos pais em chamas
 
naquela noite
 
hoje
 
o filho bonitinho do casal feio vai gozar pela primeira vez 

Gracco é paulista de Diadema. Foi membro do conselho gestor e editorial da revista Laboratório de Poéticas – Antenas & Raízes de 2008 a 2009- ano em que estreou na poesia com a publicação de Refém das Ideias. Em 2011, com o poema Patmos, recebe o prêmio Plínio Marcos de Literatura. Em 2013 publica Hérnia (Selo DoBurro) e A Voz de Tudo (Falavra). Prepara seu primeiro EP “Leão pra alimentar”, que traz canções literárias, parcerias com poetas  e escritores contemporâneos e O LIVRO IMPUBLICÁVEL com textos já lançados e inéditos.  

PATMOS
poema de Gracco Oliveira.
filmado por: Marcelo Mariano