A voz feminina de Adélia Prado

Professora, poeta e contista, Adélia Prado apenas publicou após seus quarenta anos. Recebida com entusiasmo por Carlos Drummond de Andrade, entre outros, a escritora mineira conquistou diversos leitores com seu estilo único. Conheça Bagagem, sua primeira obra publicada, disponível online.

Adélia Luzia Prado de Freitas (Divinópolis, 13 de dezembro de 1935), mais conhecida como Adélia Prado, é uma poetisa, professora, filósofa e contista brasileira ligada ao Modernismo. 

Sua obra retrata o cotidiano com perplexidade e encanto, norteados pela fé cristã e permeados pelo aspecto lúdico, uma das características de seu estilo único. Em 1976, enviou o manuscrito de Bagagem para Affonso Romano de Sant’Anna, que assinava uma coluna de crítica literária no Jornal do Brasil. Admirado, acabou por repassar os manuscritos a Carlos Drummond de Andrade, que incentivou a publicação do livro pela Editora Imago em artigo do mesmo periódico. 

 A escritora mineira Adélia Prado publicou o seu primeiro livro aos 40 anos. Intitulado Bagagem (1976), essa primeira publicação foi apadrinhada por Carlos Drummond de Andrade que, além de elogiar a autora estreante, enviou a série de poemas para a Editora Imago. 

 Adélia costuma dizer que o cotidiano é a própria condição da literatura.  Morando na pequena Divinópolis, cidade com aproximadamente 200.000 habitantes, estão em sua prosa e em sua poesia temas recorrentes da vida de província, a moça que arruma a cozinha, a missa, um certo cheiro do mato, vizinhos e  gente de lá.

Com licença poética 

 
Quando nasci um anjo esbelto, 
desses que tocam trombeta, anunciou: 
vai carregar bandeira. 
Cargo muito pesado pra mulher, 
esta espécie ainda envergonhada. 
Aceito os subterfúgios que me cabem, 
sem precisar mentir. 
Não sou feia que não possa casar, 
acho o Rio de Janeiro uma beleza e 
ora sim, ora não, creio em parto sem dor. 
Mas o que sinto escrevo.  Cumpro a sina. 
Inauguro linhagens, fundo reinos 
— dor não é amargura. 
Minha tristeza não tem pedigree, 
já a minha vontade de alegria, 
sua raiz vai ao meu mil avô. 
Vai ser coxo na vida é maldição pra homem. 
Mulher é desdobrável. Eu sou. 

A formalística 

O poeta cerebral tomou café sem açúcar 
e foi pro gabinete concentrar-se. 
Seu lápis é um bisturi 
que ele afia na pedra, 
na pedra calcinada das palavras, 
imagem que elegeu porque ama a dificuldade, 
o efeito respeitoso que produz 
seu trato com o dicionário. 
Faz três horas que já estuma as musas. 
O dia arde. Seu prepúcio coça. 

Alfândega 

O que pude oferecer sem mácula foi 
meu choro por beleza ou cansaço, 
um dente exraizado, 
o preconceito favorável a todas as formas 
do barroco na música e o Rio de Janeiro 
que visitei uma vez e me deixou suspensa. 
‘Não serve’, disseram. E exigiram 
a língua estrangeira que não aprendi, 
o registro do meu diploma extraviado 
no Ministério da Educação, mais taxa sobre vaidade 
nas formas aparente, inusitada e capciosa — no que 
estavam certos — porém dá-se que inusitados e capciosos 
foram seus modos de detectar vaidades. 
Todas as vezes que eu pedia desculpas diziam: 
‘Faz-se de educado e humilde, por presunção’, 
e oneravam os impostos, sendo que o navio partiu 
enquanto nos confundíamos. 
Quando agarrei meu dente e minha viagem ao Rio, 
pronto a chorar de cansaço, consumaram: 
‘Fica o bem de raiz pra pagar a fiança’. 
Deixei meu dente. 
Agora só tenho três reféns sem mácula. 

BAGAGEM, primeiro livro de Adélia Prado, mostra em suas páginas o talento que faria da escritora uma das mais aclamadas poetisas da literatura brasileira, com um estilo que contrasta a leveza das palavras com a força dos sentimentos.  

Publicado originalmente em 1976, BAGAGEM foi lido e recebido com empolgação por Carlos Drummond de Andrade, um dos entusiastas da obra de Adélia e que indicou sua publicação. O livro traz textos repletos de emoções que, para a autora, são inseparáveis da criação, ainda que nascidas, muitas vezes, do sofrimento. O sentido de religiosidade também está presente em grande parte dos poemas, retratando parte da realidade da vida no interior do Brasil. Muitas vezes, Adélia opta por expor conflitos entre o sagrado e o profano, observados a partir de coisas simples da natureza ou até mesmo da leitura de um texto religioso.  

Os poemas de BAGAGEM nasceram de um período em que Adélia escrevia incessantemente. “Os poemas praticamente irromperam, apareceram cargas e sobrecargas de poemas. Eu escrevia muito nesse período”, confessa a autora. Apesar de muitos e variados, abordando temas tão diversos quanto o amor carnal, o amor divino, a vocação do poeta, as cores e as dores da vida, os textos possuem uma unidade, uma fala peculiar. 

"Entre outros títulos que me ocorreram, Bagagem era o que resumia, para mim, aquilo que não posso deixar ou esquecer em casa. A própria poesia"