Guimarães Rosa, a poesia de um mestre da prosa

Guimarães Rosa, a poesia de um mestre da prosa

Autor de clássicos da literatura brasileira como Sagarana e Grande Sertão: Veredas, Rosa é um dos escritores mais respeitados e influentes do Brasil. Retratou o Sertão e inovou a linguagem com maestria e originalidade e, embora conhecido por sua prosa, também escreveu poemas, publicados postumamente no livro Magma.



Gargalhada

 

Quando me disseste que não mais me amavas,

e que ias partir,

dura, precisa, bela e inabalável,

com a impassibilidade de um executor,

dilatou-se em mim o pavor das cavernas vazias…

Mas olhei-te bem nos olhos,

belos como o veludo das lagartas verdes,

e porque já houvesse lágrimas nos meus olhos,

tive pena de ti, de mim, de todos,

e me ri

da inutilidade das torturas predestinadas,

guardadas para nós, desde a treva das épocas,

quando a inexperiência dos Deuses

ainda não criara o mundo…

Revolta

 

Todos foram saindo, de mansinho,

tão calados,

que eu nem sei

se fiquei mesmo só.

 

Não trouxe mensagem

e nem deram senha…

 

Disseram-se que não iria perder nada,

porque não há mais céu.

E agora, que tenho medo,

e estou cansado,

mandam-me embora…

 

Mas não quero ir para mais longe,

desterrado,

porque a minha pátria é a minha memória.

Não, não quero ser desterrado,

que a minha pátria é a memória…

Elegia

 

Teu sorriso se abriu como uma anêmona

entre as covinhas do rosto infantil.

Estavas de pijama verde,

nas almofadas verdes,

os pezinhos nus, as pernas cruzadas,

pequenina,

como um ídolo de jade

que teve por modelo uma princesa anamita.

Tuas mãos sorriam,

teus olhos sorriam,

o liso dos teus cabelos pretos sorria,

e mesmo me sorriste,

e foi a única vez…

Não pude calçar, com beijos os teus pezinhos,

e não pudeste caminhar para mim…

Mas é bem assim que os meus sonhos se possuem.



“Não entender, não entender, até virar criança.”

(“O Cara-de-Bronze”, em Corpo de baile, J. G. Rosa)

Clássicos  guimaraes-rosa-escritor-mochileiro Guimarães Rosa, a poesia de um mestre da prosa

João Guimarães Rosa nasceu em Cordisburgo (MG), em 27 de junho de 1908. Mudou-se para Belo Horizonte em 1918, para dar continuidade aos estudos. Formou-se em Medicina, em 1930, e exerceu a profissão em cidades do interior mineiro, como Itaúna e Barbacena. Durante esse período, publicou seus primeiros contos na revista O cruzeiro e estudou, por conta própria, alemão e russo.

No início da carreira diplomática, exerceu, como primeira função no exterior, o cargo de cônsul-adjunto do Brasil em Hamburgo, na Alemanha, de 1938 a 1942. Lá, conheceu e veio a casar-se com Aracy de Carvalho, funcionária da Itamaraty que, no contexto da Segunda Guerra Mundial, para auxiliar judeus a fugir para o Brasil, emitiu mais vistos do que as cotas legalmente estipuladas. Por essa razão, Aracy de Carvalho ganhou, por essa ação humanitária e de coragem, no pós-Guerra, o reconhecimento do Estado de Israel. É a única mulher brasileira homenageada no Jardim dos Justos entre as Nações, no Yad Vashem, que é o memorial oficial de Israel para lembrar as vítimas judaicas do Holocausto. 

Magma é o único livro de poemas de João Guimarães Rosa, publicado postumamente, em 1996, pela Editora Nova Fronteira. Com este livro, valendo-se do pseudônimo “Viator”, Rosa ganhou, em 1936, um concurso literário criado pela Academia Brasileira de Letras. Embora premiada, o autor jamais teve interesse em publicá-la, posto que a tinha como uma obra menor.

No discurso de entrega do prêmio acima mencionado, Rosa ponderou:

“O poeta não cita: canta. Não se traça programas, porque a sua estrada não tem marcos nem destino. Se repete, são idéias e imagens que volvem à tona por poder próprio, pois que entre elas há também uma sobrevivência do mais apto . Não se aliena, como um lunático, das agitações coletivas e contemporâneas, porque arte e vida são planos não superpostos mas interpenetrados, com o ar entranhado nas massas de água, indispensável ao peixe—neste caso ao homem, que vive a vida e que respira arte. Mas tal contribuição para o meio humano será a de um órgão para um organismo: instintiva, sem a consciência de uma intenção, automática, discreta e subterrânea.” 

Fonte: Portal Raízes

 No Araguaia – I



Nestas praias sem cercas e sem dono

do velho Araguaia,

achei um amigo, escuro,

de cara pintada a jenipapo e urucum:

o carajá Araticum – uassu

 

Seus músculos são cobras grossas

que incham sobre o couro moreno;

suas narinas têm sete faros;

e nos seus ouvidos há cordas sutis, onde ressoa o pio

curto e triste,

que, mais de um quilometro distante,

solta o patativo borrageiro.

 

Quando o rio ensolado enruga, em qualquer ponto,

a lâmina lisa de níquel molhado,

ele traduz , na esteira da mareta,

com o binóculo faiscante dos olhos,

o tamanho e a raça do peixe navega escondido.

E a flechada vai arpoar, certeira , debaixo d’água,

o pacamã ou o pirarucu.

 

A mata não lhe dá mais surpresas

(tem vinte presas onça preta no colar),

nem o rio lhe conta mais novidades

(ele é capaz de flutuar , até dormindo,

correnteza abaixo, como um pau de pita).

 

Hoje eu lhe perguntei:

–“Como foi feito o mundo,

ó meu patrício Araticum Uassu?…”

Ele riu, deu um mergulho no rio,

e emergiu, com a cabeleira em gotas,

sem precisar de falar…

— “Bem, mas o que é mesmo a vida, meu irmão moreno?…”

 

 

Araticum-uassu riu com mais gosto ainda,

e saiu a remar, com esforço simulado,

tangendo a piroga corredeira acima…

–“Muito bem, amigo, quero saber, agora,

o que pensas do amor…”

 

 

Desta vez ele não riu — franziu o rosto,

e jogando fora o remo de taquara,

deitou-se na canoa, indiferente,

com olhos fechados, braços cruzados,

e deixando-se levar pela corrente, à-toa,

sumiu na curva,atrás do saranzal…