Lançamento do livro “Sarah” de Diego Garcez

Publicação independente lançada na plataforma digital da Amazon Kindle, o livro é propositalmente curto para rivalizar com o tempo que se gasta nas redes sociais. O objetivo é compartilhar as emoções e nuances depositadas no texto com a maior quantidade de pessoas possível.

Sarah é uma mulher negra que está prestes a completar cinquenta anos de idade e resolveu riscar suas memórias no papel. Ela escreve do futuro olhando para seu passado e está a cerca de trinta anos à frente do agora. Já viveu e viu muita coisa acontecer, coisas que marcaram a história do mundo e em especial a da cidade do Recife. 
 
A infância de Sarah foi invadida pela violência doméstica em Caruaru, no interior de Pernambuco. Teve que conviver com os machucados e cicatrizes, porém aprendeu a nunca dobrar sua coluna sequer uma vértebra. Sempre encarou os tropeços com a firmeza da sua pele. 
 
Na adolescência mudou-se para Recife, mas não encontrou a mesma metrópole que havia vivido uma euforia econômica poucos anos antes. Nem tudo estava perdido, a maconha, o sexo e a tecnologia ainda eram fartos na cidade. Sarah conheceu a força de cada um deles, entretanto descobriu que não solucionariam seu grande dilema, vingar-se do mundo ou aprender a amá-lo. 

Eu Sou Sarah 

Eu sou Sarah e neste momento estou sentada embaixo de uma árvore de tronco entrelaçado que deve ter o dobro da minha idade. Esse ano completo cinquenta anos e resolvi começar a riscar no papel um pouco do que vivi. Não usarei a verdade que picota o que realmente importa em pedaços tão pequenos que ninguém tenta desvendá-los. Aqui registrarei a verdade inteira, afinal nunca tive o privilégio de ser enganada pela vida.  

Vivi momentos que hoje estão encruados na história de uma cidade peculiar da América Latina, Recife. Uma cidade que ganha sua forma a partir de todos os substratos mais íntimos, viris e primitivos da humanidade. Afinal, há quem diga que o mundo nasceu aqui.  

Hoje, Recife encontra-se muito transformada, sua região metropolitana já tem mais de 6 milhões de habitantes e a tecnologia lança seus binários por toda parte. Enfrentamos novos tipos de problemas que ninguém sequer imaginava que existiriam quando gritei ao mundo pela primeira vez na maternidade do hospital Jesus Nazareno em Caruaru, no ano de 2001.  

Eu sou uma herdeira da tradicional família brasileira, aquela que o pai bate na mãe e a mãe se vira para aguentar as tapas de casa e as tapas do mundo. Não foi só minha mãe que apanhou de meu pai. Apesar de ela me proteger e absorver a maior parte da agressividade dele, recordo-me, com a nitidez do latido do cão, um acontecimento quando tinha sete anos de idade. Ele chegou em casa chutando e esmagando os meus brinquedos que estavam espalhados. Abriu uma cerveja e ligou a TV para assistir ao jogo. Eu brincava na sala, mas não estava ali, encontrava-me dentro do universo imaginário que havia criado para sobreviver.  

Sem querer encostei na garrafa de cerveja, ainda tentei segurá-la, mas ela se espalhou em pedaços de desespero pelo chão. Meu pai berrou, pegou um caco de vidro e esfregou em minhas costas. Eu gritei de dor, mas foi um grito diferente. Nunca havia sentido aquilo antes, porque ao mesmo tempo eu me virei de frente para ele, parei de chorar e olhei firme no seu olho. Ele largou o vidro. Essa condição de vida teve um outro efeito colateral: eu e minha mãe nos tecemos numa uníssona força feminina que alavancou nossas vidas e nos levou a lugares impensados. Lugares bons e lugares ruins.  

Lembro quando juntas expulsamos Carlos de nossas vidas. Sinto uma mistura de sentimentos, uma mão interna puxa algumas de minhas vísceras para baixo e me faz contorcer, também sinto o impulso involuntário que sacode os vencedores ao ar. Nunca me liberto da doença de ter apunhalado um pai.  

Eu tinha 14 anos de idade e havia crescido sendo testemunha ocular dos socos que minha mãe levara dele. Ele era alcoólatra e tinha uma loja de produtos eletrônicos em Caruaru. Quando os negócios iam mal, minha mãe apanhava, quando iam bem, ela apanhava ainda mais. Não havia muita lógica no seu comportamento violento e obsessivo. Confesso que, depois de anos de terapia, parei de tentar compreender o que o movia.  

O fato é que numa noite tomada pelo frio que prenuncia o rasgar dos ossos no inverno caruaruense, após ele mais uma vez chegar bêbado e quebrar a cara da minha mãe até amolecer os dentes, fui até sua gaveta de coisas íntimas, que sempre ficava repleta de absorventes, alguns cremes, maquiagem, esmaltes e todas essas coisas que amedrontam os homens. Ali ela guardava um punhal.  

Meu pai mal tinha condições de se manter ereto dentro do seu próprio corpo, baforava álcool e balbuciava espumas de saliva e raiva. Ele estava de joelhos no corredor da nossa casa e minha mãe no chão. Eu conhecia bem a dor da posição fetal, era assim que eu sempre encasulava-me no canto do meu quarto, quando meu pai chegava da rua e procurava minha mãe. A única coisa que me fazia levantar era a força bruta do puro e encharcado ódio. Neste dia aprendi que o ódio também salva.  

Levantei-me e fiquei espreitando a cena pela fresta da porta como de costume. Algumas vezes meu pai estuprava minha mãe antes de bater, outras vezes estuprava depois. A única coisa que eu enxergava eram os olhos de minha mãe. Eles sempre estavam inundados de lágrimas, que desciam pelo rosto e limpavam seu sangue.  

Neste dia fui até a gaveta dela e peguei o punhal. Cheguei por trás do meu pai com o punhal em mãos e minha mãe olhou-me. Deitada no chão, ele de joelhos em cima dela, a única coisa que ela fez foi fechar o olho e aumentar o choro. Cravei o ferro fino no pescoço dele, neste momento com a força de quem já sabia das coisas.  

Ele caiu com a cabeça pendida para baixo, curvado, urrando e mergulhado em sangue. De repente eu já não sabia bem onde estava, por alguns instantes não tinha mais certeza de quem eu era. Recordo apenas de minha mãe ter abraçado-me e recolhido o punhal para si. 

Livros  DIEGO-GARCEZ-ESCRITOR-300x300 Lançamento do livro “Sarah” de Diego Garcez

Diego Garcez é sobretudo poeta. Ainda quando criança encontrou na poesia uma forma de dialogar com o mundo. Nos últimos anos publicou crônicas regularmente em alguns veículos de comunicação do Recife, como o NE10 e o Poraqui. Agora ele estreia na ficção através do livro “Sarah” e garante que de onde saiu esse tem uma porção de novas histórias por vir. Ele também é empreendedor de impacto social e sócio da empresa Joy Street no Porto Digital.