Sangue Negro, Noémia de Sousa

Carolina Noémia Abranches de Sousa Soares foi poeta, tradutora, jornalista e militante política.  Nasceu em 1926, em Catembe, vila no litoral Sul de Moçambique, banhada pelo Oceano Índico, na baía de Maputo, bem em frente à capital de Moçambique. 
Na década de 1940 viveu numa casa de madeira e zinco no bairro da Mafalala. Ali escreveu poemas que se tornariam símbolos nacionalistas africanos como “Deixa passar o meu povo”.  
Só saiu do bairro por motivos políticos, em 1949.
Entre 1951 e 1964 viveu em Lisboa e trabalhou como tradutora. Em consequência da sua posição política, de oposição ao Estado Novo, teve de exilar-se em Paris. Lá, trabalhou no consulado de Marrocos e adopta o pseudônimo de Vera Micaia.
Poeta, jornalista de agências de notícias internacionais, viajou por toda a África durante as lutas pela independência de vários países.  
Noémia de Sousa é conhecida como “Mãe dos poetas moçambicanos” por sua grande influência. Autora de densa obra poética que representa a resistência da mulher africana, seu único livro, Sangue negro, é composto por 46 poemas, escritos entre 1948 e 1951.

Marcelino Freire lê Súplica da escritora moçambicana Noémia de Sousa.

Sua obra está dispersa por muitos jornais e revistas. Colaborou em publicações como Mensagem (CEI), Mensagem (Luanda), Itinerário, Notícias do Bloqueio (Porto, 1959), O Brado Africano, Moçambique 58; Vértice (Coimbra) e Sul (Brasil). 
Em 2001, a Associação dos Escritores Moçambicanos publicou Sangue Negro, que reuniu a poesia da autora. 
Faleceu em 2002, em Cascais, Portugal. 
Sua poesia está também representada na antologia de poesia moçambicana Nunca Mais é Sábado, organizada por Nelson Saúte. 
Foi editada no Brasil pela Editora Kapulana. 
A edição brasileira manteve a estrutura original das edições moçambicanas e conta com ilustrações de Mariana Fujisawa, prefácio da Profa. Dra. Carmen Tindó, estudos de Fátima Mendonça, Francisco Noa e Nelson Saúte, além de depoimentos de amigos, companheiros, leitores apaixonados pela obra de Noémia de Sousa. 
A Editora Kapulana agradeceu a todos que ajudaram a concretizar este belíssimo trabalho na Pré-Balada Literária de Salvador e na Balada Literária de São Paulo e, em especial, ao escritor Marcelino Freire, que tornou possível o lançamento do livro Sangue negro, de Noémia de Sousa, com muito carinho e dedicação. 
Súplica 
Tirem-nos tudo, 
mas deixem-nos a música! 
  
Tirem-nos a terra em que nascemos, 
onde crescemos 
e onde descobrimos pela primeira vez 
que o mundo é assim: 
um labirinto de xadrez… 
  
Tirem-nos a luz do sol que nos aquece, 
a tua lírica de xingombela 
nas noites mulatas 
da selva moçambicana 
(essa lua que nos semeou no coração 
a poesia que encontramos na vida) 
tirem-nos a palhota  ̶  humilde cubata 
onde vivemos e amamos, 
tirem-nos a machamba que nos dá o pão, 
tirem-nos o calor de lume 
(que nos é quase tudo) 
̶  mas não nos tirem a música! 
  
Podem desterrar-nos, 
levar-nos 
para longes terras, 
vender-nos como mercadoria, 
acorrentar-nos 
à terra, do sol à lua e da lua ao sol, 
mas seremos sempre livres 
se nos deixarem a música! 
Que onde estiver nossa canção 
mesmo escravos, senhores seremos; 
e mesmo mortos, viveremos. 
E no nosso lamento escravo 
estará a terra onde nascemos, 
a luz do nosso sol, 
a lua dos xingombelas, 
o calor do lume, 
a palhota onde vivemos, 
a machamba que nos dá o pão! 
  
E tudo será novamente nosso, 
ainda que cadeias nos pés 
e azorrague no dorso… 
E o nosso queixume 
será uma libertação 
derramada em nosso canto! 
̶  Por isso pedimos, 
de joelhos pedimos: 
Tirem-nos tudo… 
mas não nos tirem a vida, 
não nos levem a música! 

Dos que vem para mudar a geografia das coisas

A plataforma Mbenga congrega jovens jornalistas culturais moçambicanos com o pressuposto de difundir a cultura. Esta iniciativa tem a intenção de exaltar a arte feita dentro e fora de Moçambique. Criada por jovens apaixonados pela expressão artística o blog faz divulgação e reflexão crítica. 
O debate “A Mafalala como berço da Consciência de Identidade Moçambicana através das Artes por parte da Comunidade Negra” deixa claro o grande legado de Noémia de Sousa em sua militância. 
(Clique na imagem para acessar)
Deixe meu povo passar
 
Noite morna de Moçambique 
e sons longínquos de marimba chegam até mim 
— certos e constantes — 
vindos nem eu sei donde. 
Em minha casa de madeira e zinco,  
abro o rádio e deixo-me embalar… 
Mas as vozes da América remexem-me a alma e os nervos. 
E Robeson e Marian cantam para mim 
spirituals negros de Harlem.  
«Let my people go»  
— oh deixa passar o meu povo,  
deixa passar o meu povo —,  
dizem. 
E eu abro os olhos e já não posso dormir. 
Dentro de mim soam-me Anderson e Paul 
e não são doces vozes de embalo. 
«Let my people go». 
 
Nervosamente,  
sento-me à mesa e escrevo…  
(Dentro de mim, 
deixa passar o meu povo,  
«oh let my people go…»
E já não sou mais que instrumento 
do meu sangue em turbilhão 
com Marian me ajudando 
com sua voz profunda — minha Irmã. 
 
Escrevo…  
Na minha mesa, vultos familiares se vêm debruçar. 
Minha Mãe de mãos rudes e rosto cansado 
e revoltas, dores, humilhações, 
tatuando de negro o virgem papel branco. 
E Paulo, que não conheço 
mas é do mesmo sangue da mesma seiva amada de Moçambique, 
e misérias, janelas gradeadas, adeuses de magaíças,  
algodoais, e meu inesquecível companheiro branco, 
e Zé — meu irrião — e Saul,  
e tu, Amigo de doce olhar azul, 
pegando na minha mão e me obrigando a escrever 
com o fel que me vem da revolta. 
Todos se vêm debruçar sobre o meu ombro, 
enquanto escrevo, noite adiante, 
com Marian e Robeson vigiando pelo olho lumírioso do rádio 
— «let my people go». 
oh let my people go. 
 
E enquanto me vierem de Harlem 
vozes de lamentação 
e os meus vultos familiares me visitarem 
em longas noites de insónia, 
não poderei deixar-me embalar pela música fútil 
das valsas de Strauss. 
Escreverei, escreverei, 
com Robeson e Marian gritando comigo: 
«Let my people go»
oh let my people go. 
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