Poemas de Fabiano Silmes

Poeta de São Gonçalo, cidade do complexo metropolitano carioca, Fabiano Silmes divide conosco seus versos. Em 2011, lançou seu primeiro trabalho literário: Comida para Bicho-Cabeça pela editora Multifoco. Escreve na internet e participou de diversos eventos culturais pelo Rio de Janeiro.

EU, ÁRVORE

Eu queria criar raízes no céu  
e frutos na terra…  

  

Queria que minhas folhas brincassem  
sem o peso da culpa no vento da tarde.  

Eu queria que meu tronco sustentasse   
o ímpeto de quem sobe para ver além.  

  

E que nenhuma mão estupida e covarde  
arranque essas flores que brotam  

diretamente dos meus sonhos…  

  

          – É o que desejo –  

  

Mas se tudo se perder, de repente,  
que fiquem aqui, vivas, as sementes  

de minha esperança ainda em flor.  

TRANSPIRAÇÃO

Trabalho arduamente o poema;  

O suor escorre entre os dedos  

E cai espesso sobre as palavras.   

  

As horas passam na dureza da lida.  

Quando a obra eu concluo exausto  

Apresento ao meu pensamento.  

(Severo juiz de minhas criações)  

  

Então, como que saudando o novo,  

Deslizo os meus dedos sobre a lira  

E todo o esforço antes pressentido,  

Matéria prima, cristaliza-se em versos.  

PINTURA

o quadro gritando cores   

no cavalete imóvel    

ganha asas e se move  

como um pássaro ferido  

para dentro do globo ocular  

e tristes cavalos entre flores  

feitas de cansaços e luz  

ganham novos contornos  

entre a forma e a perspectiva  

alcançada pelo vislumbre   

do sonho traduzido em cores  

pelo traço forte dos pincéis.  

POEMA DE CASA 

SALA  

  

não sinto mais a ausência no sofá   

não sinto mais a presença pela casa…  

sinto quase uma paz n’alma  

  

mas quando chega a noite  

deixo a televisão ligada  

para não morrer sufocado  

pelo silêncio da sala.  

  

CORREDOR  

  

o corredor me leva para outro tempo  

outra casa nesta que habito  

entre os ruídos abafados da noite   

e os passos dos vivos e dos mortos  

que ainda moram dentro dela.  

  

COZINHA  

  

no fogão branco esmaltado  

a combustão de gazes   

nascidos da putrefação dos corpos  

dos dinossauros mortos aquece  

a comida que é preparada para os vivos.  

  

SALA DE JANTA  

  

na sala de janta  

um prato a menos  

uma saudade a mais   

  

BANHEIRO  

  

as águas do chuveiro lambem:  

os braços as mãos o rosto  

o pescoço o peito a barriga   

as coxas as pernas o sexo  

e são contidas impiedosamente  

pelo ralo cheio de fios de cabelos  

que ainda guardam o seu cheiro neles.  

  

QUARTO   

  

a cama recebe o corpo cansado  

após a labuta na cidade  

no macio do colchão  

o homem é forjado  

entre os sonhos e a realidade  

que o espera no dia seguinte.   

  

  

A PORTA DE CASA  

  

a porta de casa  

abre e fecha um mundo  

a sete chaves  

  

deus sabe como pesam essas chaves.  

  

  

VARANDA   

  

da varanda a vista se estende  

para a diafaneidade de um céu azul  

contido impiedosamente  

pelo muro e o telhado de outras casas.  

  

  

QUINTAL   

  

no quintal feito mais de memória  

do que abandono e jardins malcuidados   

pode-se ouvir os gritos alegres de outrora  

todos guardados dentro do homem sério  

que olha e não se vê no espelho que o reflete.  

  

  

O PORTÃO   

  

do portão para fora  

não se sabe   

e sequer se tem ideia  

do mundo que existe  

além da solitária   

proteção de ferro  

que barra a travessia  

das pessoas indesejáveis.  

Em seu livro Comida para Bicho Cabeça, Fabiano nos brinda com uma caixa de surpresas, um pequeno universo em versos e formas, viagens e pousos em paralelos fabulosos, fazendo que teçamos a cada poema um novo mundo imaginário e mais suportável de se viver do que aquele em que já vivemos.

KAMIKAZE

sei que algo me falta  
algo que me incendeia  
algo que não sei dizer  
 
alguma coisa em mim  
é um desejo inusitado  
que persiste até doer  
 
sinto um peso n’alma  
que é quase um gesto…  
um gesto de desespero  
feito da mais fria calma  
 
de um kamikaze que  
sabe que vai morrer.

LIMBO

Corações ocupados pelo vazio  

Espantam pássaros noturnos   

Enquanto o vento embala   

As flores amanhecidas.   

  

Deito fora tudo que não é dentro  

E uma substância líquida   

Vem colar em meus olhos   

Uma tristeza azul sem céu.  

  

Ouço as batidas surdas   

Dentro do meu peito   

E cancelo a ressurreição   

Dos astros em minha face.  

  

Corre as horas incertas  

E em algum lugar amanhece   

Em algum lugar a vida segue…  

  

Enquanto aqui do lado de fora  

(Do corpo da mente da alma)  

Os dias se repetem  

Todos iguais só que diferentes.  

CONCERTO AO AR LIVRE

zunem as abelhas nos motores   

gazes gazes gazes nos pulmões   

a tosse seca dentro dos edifícios   

mal disfarçada pela mão que abafa  

súbito anjo que estrangula o grito   

  

uma multidão de passos solitários   

seguem desordenadamente em marcha   

cada um leva um mundo de ideias   

não repartidas por medo ou egoísmo  

que se perderão e serão esquecidas   

  

na rua, o corpo a corpo nas calçadas   

marca os limites dos espaços habitados   

com a tensão de guerra a todo instante   

ninguém ouve a música que se forma  

da beleza oculta na fenda dos muros  

  

entre as coisas desutilizadas no chão   

ninguém repara na orquestra silenciosa  

que incendeia com delicada harmonia   

o perceptível caos diário que nos cerca  

  

na correria antropofágica da cidade   

escravos das horas, ninguém percebe    

a música da vida que soa das pétalas   

das flores que nascem entre as frestas.  

INSÍGNIA VERMELHA

o interior   

do interior   

da violência  

do interior  

do medo  

do desespero  

do medo  

da violência  

está por fora  

e a agressão  

consta por dentro.  

SALTO MORTAL 

mergulho na vida 

com a coragem firme 

e os músculos leves. 

 

sou um sopro

fragmento partícula

de algo que no fundo 

permanece intacto 

mesmo depois das colisões.

ANTECÂMARA DOS SONHOS

tudo é passagem

oculta câmara 

que te leva mais fundo 

 

no interior do interior

das coisas dadas

enigma de luz baça 

 

em que a própria luz

se perde no desencontro

do próprio encontro 

 

choque abrupto de forças 

conciliando medo e coragem 

ponha-te de pé para novas lutas

 

e casto, ergue-te do pó e vai.

APARIÇÃO

descendo  

torto a rua  

insone  

sou outra vez  

o meu nome  

alguém me chama  

passo a existir.  

ELEGIA

frio e calmo   

apertou o gatilho  

   

sombra de sangue  

se espalhando pelas coisas  

   

corpo inerte desabando  

no assoalho   

   

(depois silêncio)  

   

naquela noite  

nenhum anjo velou o morto. 

POEMA PURO

um dia desses  

eu vou parar  

só para escrever  

um poema  

   

que em todo marasmo  

seja mais do que pareça  

   

e que não tenha outra pretensão  

além de ser ele mesmo  

em todo silêncio que consagre  

a alegria quase triste de seus versos.  

SEGUNDO PLANO

tiros y bombas y sangue y lágrimas  

a tv que filmava cortou a imagem  

como que corta uma cebola  

e chora sem sentimento algum  

o alvoroço das reivindicações  

do povo acuado diante das lentes  

a tv filmou mais não registrou  

cortou e mostrou outra cena  

o grande milagre da televisão  

é a possibilidade de colocar  

a verdade sempre em segundo plano.  

A LONGA OBJETIVIDADE DAS COISAS

Breves são as flores  
Misteriosa é a resistência das pedras  
Indiferente é o vento frio que passa  
Despreparados são os homens  

Breves são os homens  
indiferentes são as pedras  
Misteriosa é a resistência do vento frio que passa  
Beijando de leve as flores despreparadas.  

À FLOR DA PELE

Quero mansamente penetrar-lhe  
Como quem abre uma porta  
E sai em direção ao desconhecido  
Sem temer o que há no mundo afora  

Quero o dia claro e impreciso sobre  
Todas as reações secundárias  

Quero afundar o meu rosto  
Na sua flor de fogo e água  
E matar toda a minha sede.  

Quero incendiar o silêncio em gemidos  
E adormecer lentamente dentro de ti  
Como se despertasse subitamente  
Para os mistérios e os segredos do sono.  

Prosa e Poesia e Vice Versa  Fabiano-Silmes2-300x300 O poeta Fabiano Silmes

Fabiano Silmes nasceu em São Gonçalo, Rio de Janeiro. Publicou Comida para Bicho-cabeça em 2011, editora Multifoco. Entusiasta do underground e da literatura marginal, posta seus poemas em sua página no facebook e em blogs e revistas alternativas. 

sobre o autor