Anel de Vidro e A Noiva por Raquel Naveira
Duas novas crônicas de Raquel Naveira, professora universitária, crítica literária, Mestre em Comunicação e Letras pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, de São Paulo, autora de vários livros de poemas, ensaios, romance e infanto juvenis.
ANEL DE VIDRO
Ficava na rua 13 de maio a casa dos meus avós. No outono, o vento fazia rodopiar a poeira e as folhas, enquanto as crianças cantavam de mãos dadas uma ciranda: “_ O anel que tu me deste/ Era vidro e se quebrou/ O amor que tu me tinhas/ Era pouco e se acabou.” Sentia toda melancolia desses versos: o anel que deveria ser um vínculo, uma aliança, o símbolo de uma união fiel e livre, era falso, um afeto sem força e sem palavra. Foi jogado do alto de uma torre no mar do esquecimento, engolido por um peixe, por um turbilhão de desejos.
Foi talvez uma lembrança forte assim que inspirou a escritora Ana Luísa Escorel (1944…) a conceber o romance Anel de Vidro. Quatro personagens numa ciranda, expondo a liquefação de suas relações íntimas. Compromisso, família, traições, armadilhas, genealogias, herança. Todos vítimas de um adultério, numa trama em que o anel se quebrou em estilhaços de dor e renúncia.
Na mesma rua da minha infância, havia uma pequena mercearia, que chamávamos, nesta terra de fronteira, de “bolicho”. No bolicho, vendiam-se pedaços de doce de figo ou goiaba, cobertos de açúcar, com um anel pendurado. Um tinha uma pedra vermelha como rubi, outro verde como esmeralda e outro brilhava como diamante. Fazia coleção deles. Colocava-os nos dedos olhando minhas mãos de longe, num gesto feminino e egocêntrico. Às vezes os beijava. Como o poeta português Mário de Sá-Carneiro (1890-1916), que se suicidou, mal saído da adolescência, escreveu no poema “Dispersão”: “Eu beijo as minhas mãos brancas…/Sou amor e piedade/ Em face dessas mãos brancas…Tristes mãos longas e lindas.”
Meu avô observava a cena e dizia sorrindo: “Está com a mão cheia de anéis? Parece o Josetti.”
O Josetti era um tipo popular, dos anos setenta, que vivia vagando pela cidade. Foi descrito por Ulysses Serra (1906-1972), num livro que marcou a literatura sul-mato-grossense, Camalotes e Guavirais: “Josetti era um vaganau diferente. De família ilustre, tinha cordura e mansuetude. O riso comedido e o gesto ainda elegante repontavam dos andrajos que o cobriam. Usava oito, dez, doze e mais anéis em cada mão, de latão e pechisbeque, uma verdadeira manopla.” Talvez usasse tantos anéis porque perdera a mulher amada e ganhara em troca um destino infeliz.
Recordo-me quando veio a notícia da morte de Josetti, numa madrugada fria, nas escadarias do Edifício Korndorfer, primeira galeria de lojas no centro, um marco da modernidade. Encontraram-no enregelado com seus anéis.
Guardei os anéis de vidro numa caixinha de veludo, que um dia desapareceu. Eram anéis que me uniam a um esposo místico. Que me isolavam e me tornavam escrava de um amo absoluto. Com aqueles anéis eu abria portas, entrava em castelos e cavernas. Fizera através deles um pacto com poderes mágicos.
Do carro, observo os umbrais conservados da casa de meus avós. Ouço ainda a cantiga de roda: “O anel que tu me deste era vidro e se quebrou…” O amor dentro de mim fulge como ouro. É laço que nada pode romper.
Raquel Naveira
Criaturas do Mar e Tartaruga Avó por Raquel Naveira
Escritora, professora universitária, crítica literária, Mestre em Comunicação e Letras pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, de São Paulo, Raquel Naveira é autora de vários livros de poemas, ensaios, romance e infanto-juvenis.
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Foi lindo ter-me vestido de noiva um dia! Eu era jovem e pensei: “Agora vou me tornar diferente, serei algo que não conheço, mas posso ser”. Ardi, tive medo, tremi, representei o papel de sedutora. E você foi fiador dos meus sonhos, não fugiu de mim, meu bem precioso.
Essa emoção reviveu dentro de mim ao assistir ao vídeo da noiva de Beirute. Ela estava radiante, perto do porto, envolta em rendas e espumas, fazendo um ensaio fotográfico. Um buquê de rosas amarelas foi colocado estrategicamente sobre o véu que despencava feito uma cascata. De repente, a explosão. Tudo voou na corrente de ar, naquele fim de outono.
O poeta Fernando Pessoa (1888-1935), também num porto, olhando o mar de Portugal, exclamou: “Quantas noivas ficaram por casar para que fosses nosso, ó Mar!” Mais melancólico do que isso, só mesmo aquelas que foram enterradas vestidas de noiva, virgens, com lírios entre os dedos ou que rolaram pelo abismo em seus cavalos, a caminho da igreja.
Vestir-se de branco no dia do casamento foi ideia da rainha Vitória (1819-1901), uma das monarcas mais icônicas da Inglaterra, que designou uma era. Apaixonada e feliz, casou-se com Albert de Saxe-Coburgo e Gotha, com um traje branco com bordados, um longo véu, coroa de flores de mirto e laranjeira, dando início a essa tradição de moda. Tiveram nove filhos. Ele faleceu subitamente, levado por uma febre de tifo. Ela passou mais da metade de sua vida viúva, toda de negro, luto fechado, isolada em seu castelo, em inconsolável tristeza.
Há outras noivas marcantes na história e na literatura, como, por exemplo, Marília. O livro Marília de Dirceu foi publicado em 1792, mesmo ano em que Dirceu, pseudônimo do poeta mineiro Tomás Antônio Gonzaga (1744-1810), partiu para o exílio em Moçambique. Deixou a noiva Marília, que de fato se chamava Maria Doroteia Joaquina de Seixas Brandão (1767-1853), desolada. Dedicou a ela versos amorosos, de uma ternura comovida, espontânea, versos à sua “Marília bela”, sua “Estrela”, aquela que não veria mais o trabalho dos cativos de Minas Gerais, tirando granetes de ouro dos rios e das serras; que não veria mais as plantações de cana e tabaco, nem faria companhia ao seu amado enquanto ele, jurista brilhante, estivesse lendo os volumes dos processos e dos pleitos. O casamento estava marcado exatamente para o dia em que ele foi preso por ser um membro da Inconfidência Mineira. No degredo africano, o poeta casou-se com a filha de um rico negociante. Já Marília esperou por ele até seu último suspiro, aos 85 anos, em profundo desgosto. Os restos mortais do poeta voltaram ao Brasil e ambos estão sepultados juntos, na antiga Casa dos Contos, em Ouro Preto.
Relato semelhante é o caso de Manoela de Paula Ferreira (1820-1903), a eterna noiva de Garibaldi. Manoela era loira, graciosa como um anjo de olhos azuis. Alimentou um amor impossível pelo guerrilheiro. Ele se encantou por ela, mas logo desistiu para não enfrentar a oposição da família e por estar envolvido com a Revolução Farroupilha. Na cidade de Laguna, ele conheceu Anita. Ela engravida e dá à luz um filho, Menotti. A corajosa Anita partiu para a Itália com Garibaldi. Morreu aos 28 anos, lutando pela unificação italiana. Manoela manteve-se fiel e solteira até a velhice, sublimando aquele amor não concretizado e trágico.
Désirée Clary (1777-1860), filha de um comerciante de sedas de Marselha, foi noiva de Napoleão. Um noivado quebrado quando ele se envolveu com a exuberante Josefina. Depois da desilusão, ela se casa com o Marechal Bernadotte e vem a ser futuramente rainha da Suécia. Mas, além dos homens, Désirée amava uma cidade: Paris. Não conseguia viver longe de suas pontes, de seus lampiões, das folhas secas na borda do rio Sena. Visitava o marido durante suas campanhas militares pela Europa. Enquanto isso, frequentava a corte de Napoleão com grande influência política e familiar, pois sua irmã Júlia era casada com José, irmão do imperador. Acompanhou o auge e o declínio do antigo noivo até a morte dele.
E, por falar em José, não podemos esquecer de Maria, a noiva judia, prometida, talhada, anunciada para mãe do Messias. Era noiva de José e apareceu misteriosamente gestando um fruto no ventre. José, aconselhado por um anjo, recebeu-a em sua casa como esposa, salvando-a do apedrejamento. Noiva sempre desejada.
As fotos de casamento nos fascinam. Debruçamo-nos sobre elas. Qual terá sido o destino desses noivos? Como se deram as bodas? As núpcias? Como selaram essa aliança? Com palavras? Com laços? Com sangue? Com liames de prata? Como tiveram coragem de entrar juntos num barco frágil, diante das atrozes tempestades? Como puderam confiar numa aventura?
Meus olhos sempre marejam de lágrimas quando vejo uma noiva. Passaram-se tantos anos, mas sempre me delicio em lembrar que um dia fui tua noiva.
Raquel Naveira
sobre a autora
RAQUEL NAVEIRA nasceu em Campo Grande, Mato Grosso do Sul, no dia 23 de setembro de 1957. Formou-se em Direito e em Letras pela Universidade Católica Dom Bosco (UCDB/MS), onde exerceu o magistério superior, desde 1987 até 2006, quando se aposentou. Doutora em Língua e Literatura Francesas pela Universidade de Nancy, França. Mestre em Comunicação e Letras pela Universidade Presbiteriana Mackenzie/SP. Cronista do jornal Correio do Estado (Campo Grande/MS). Pertence à Academia Sul-Mato-Grossense de Letras (exerce o cargo de vice-presidente), à Academia Cristã de Letras de São Paulo e ao PEN Clube do Brasil. É palestrante, dá cursos de Pós-Graduação e oficinas literárias. Escreveu vários livros, entre eles Abadia (poemas, editora Imago,1996) e Casa de Tecla (poemas, editora Escrituras, 1999), finalistas do Prêmio Jabuti de Poesia, da CBL. Os mais recentes são os livros de crônicas Caminhos de Bicicleta (São Paulo: Miró, 2010); o de poemas, Sangue Português: raízes, formação e lusofonia (São Paulo: Arte&Ciência, 2012), Prêmio Guavira da Fundação de Cultura de Mato Grosso do Sul; o de ensaios Quarto de Artista (Rio de Janeiro: Íbis Libris, 2013); Jardim Fechado: uma Antologia Poética (Porto Alegre/RS: Vidráguas, 2015), painel de mais de três décadas de publicações e o de crônicas O Avião Invisível (Rio de Janeiro: Íbis Libris, 2017). No gênero infantil escreveu Guto e os Bichinhos 1 e 2 (Campo Grande/MS:Alvorada, 2012) e Dora, a Menina Escritora (Campo Grande/MS: Alvorada, 2014). Escreveu o romance Álbuns da Lusitânia (Campo Grande/MS: Alvorada, 2015).