Cabra Marcado para Morrer
Nascido como uma produção universitária itinerante, de ficção baseada em fatos tornou-se resgate de memória e documento histórico.
“Somos um país subdesenvolvido, subdesenvolvido, subdesenvolvido!”, canção popular do extenso repertório das caravanas culturais da UNE Volante que percorriam o país, inicia o documentário sobre o momento de extrema violência, perseguição e silêncio que foi imposto aos trabalhadores rurais em 1964.
Organizados nas Ligas Camponesas, que datavam dos anos 50, questionavam a expropriação e dificuldade de acesso à terra no terceiro mundo e atraíram a atenção de intelectuais e políticos do mundo inteiro como Sartre e Robert Kennedy.
O recado da música se revela ao longo do documentário: eram eles, os trabalhadores rurais, as principais vítimas do modelo de modernização e progresso a ser enfiado goela abaixo desta gente pobre, atrasada e ignorante, marcada para morrer.
O homem do campo foi historicamente retratado no mundo ficcional da literatura como reduzido a um tipo peculiar de gente, descrita como o sertanejo de Euclides, assassinado pelo Estado em Canudos, ou estudada à distância como uma manifestação do messianismo rural.
Invisibilizados sistematicamente por compor uma população heterogênea e herdeira de um passado histórico ligado à escravidão e ao colonialismo, o trabalhador rural brasileiro é dificilmente encaixado nas definições teóricas acadêmicas, desenvolvidas a partir das experiências que o Brasil se negava a realizar numa ampla reforma agrária.
"Todos os regimes são iguais, desde que a pessoa não tenha proteção política. Todos são rústicos, violentos e arbitrários, independente das camadas e situações econômicas, independente das facções políticas, simplesmente para quem não tenha poder. Se o filme não registrar este meu protesto, esta minha veemência, esta verdade que falta à capacidade intelectual expressiva do coração de minha mãe. Quero repudiar qualquer sistema de poder. Nenhum presta para o pobre!" (Abraão Teixeira, filho de Elizabeth)
Essa população, que era pintada desde o Estado novo como refém de lideranças carismáticas ou mesmo bandoleiras, acusada como fomentadora da subversão constante nas ideias marxistas e anarquistas, essa gente, que é e não é a mesma gente, ganharia dos universitários um filme, uma chance de revelar sob que injustiças viviam os pobres do campo.
Um novo clamor por reforma agrária alimentado por trabalhadores diretamente atingidos pela substituição tecnológica da modernização agrícola vinha ganhando força política no Nordeste e expressão nacional através das plataformas de Francisco Julião, eleito deputado federal por Pernambuco, após ter sido deputado estadual. No cenário internacional, Cuba empreendera sua revolução popular. Mais tarde, as reformas de base de Jango que procuram atender as demandas das Ligas Camponesas, nomeadas assim já numa tentativa de associação com a “ameaça comunista”, precipitaram o golpe militar que interromperia o filme e a vida de várias lideranças.
O filme original seria sobre a trajetória do líder das ligas camponesas de Sapé na Paraíba, João Pedro Teixeira, morto numa emboscada em 1962. Apesar de não ser concluído, podemos ver sua história contada anos depois junto a história do homem que o inspirou, dos percalços de seus companheiros, filhos e esposa viúva, Elisabeth, que chegaram a mudar de nome para escapar à repressão.
Vemos também a censura ao filme e a perseguição a seus realizadores, acusados de subversivos em conluio com interesses internacionais numa explícita intenção de apagar a memória e invisibilizar ainda mais o trabalhador rural enquanto ativista político, desumanizado sob uma demonização histérica e falsa para justificar a repressão violenta, marca do autoritarismo do regime.
A repressão ao trabalhador rural através do Estado remonta ao aparelhamento deste mesmo Estado por parte da elite latifundiária, sempre muito bem representada nos três poderes desde antes da Proclamação da República. Mas, para não mascarar a realidade com anacronismos é preciso entender como esses conflitos se intensificaram a partir de seus respectivos contextos.
O movimento que Cabra Marcado Para Morrer realiza alinhava memória e história de uma maneira ímpar. Utiliza-se de um fio narrativo onde depoimentos, fatos, documentos e narrativas oficiais são confrontados a todo tempo, colocados ora para confirmar, corrigir ou mesmo desmentir os relatos dos entrevistados. Sua condução é calma, progressiva e constante, assentada numa escuta sensível e despojada, que nos transmite empatia ao mesmo tempo em que joga luz, principalmente ao final, sobre a censura e a violência covarde do regime ditatorial. Revelam-se o filme sonhado sobre João e o pesadelo da história do Brasil rural vivido por Elizabeth, estrela nesse documentário.
Se não desperta a mesma indignação militante que o inspirou, desnuda de forma brilhante, típica de uma obra-prima, uma realidade que fazemos força para não enxergar depois de tanto tempo nos negando a resolver.
Afinal de contas, “somos um país… subdesenvolvido, subdesenvolvido, subdesenvolvido…”
Cabra Marcado para Morrer
Documentário de Eduardo Coutinho (1984)
Ligas Camponesas
Canção do Subdesenvolvido de Carlos Lyra e Chico de Assis
O contexto de surgimento das Ligas Camponesas está ligado a industrialização incentivado durante o governo JK, na década de 1950. A intensificação da mecanização da produção agrícola produziu desemprego e redução de salários.
Em 1959, foi criada a Superintendência para o Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE), administrada pelo economista Celso Furtado, com o objetivo de produzir estudos sobre a situação socioeconômica do Nordeste e encontrar soluções imediatas para a região. Nesse mesmo ano, a Igreja Católica declarou-se a favor da reforma agrária, ampliando o apoio à causa levantada pelas ligas camponesas.
A primeira liga foi formada em 1954, em Vitória de Santo Antão, no estado de Pernambuco, reunindo 1200 trabalhadores rurais.
Os efeitos econômicos dos diferentes ciclos de inovação tecnológica e aquecimento dos mercados internacionais provocou o agravamento das condições do trabalhador rural ao alterar, sempre sem mecanismos compensatórios e definitivamente sem reforma agrária, as condições que lhe permitiam fixar-se ao campo.
A cidade não conseguira absorver os migrantes produzidos aos milhares pela mecanização e especulação fundiária. As desculpas do governo que se valiam de pérolas retóricas como “preço a pagar pelo progresso”, não convenciam.
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