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Declarações para 1972, Rachel de Queiroz

Declarações para 1972, Rachel de Queiroz

 Rachel de Queiroz, autora de destaque, foi a primeira mulher a ingressar na Academia Brasileira de Letras em 1977, foi também a primeira mulher galardoada com o Prêmio Camões. 

Declarações para 1972, Rachel de Queiroz

Meu neto dizia: “No ano 2000 eu estarei com  quarenta e quatro anos. Não é tão  velho  assim – ainda vai dar para eu ver muita coisa”. 

Meu Deus, menino, quarenta e quatro não é tão velho  assim! quarenta e quatro é mocidade radiosa, é primavera , é desabrochar! quando raiar o ano 2000, se eu for viva, do que ?Deus me livre, terei oitenta e nove anos, quase noventa. E em matéria de noventa anos, só aqueles noventa anos lindos de Raul Fernandes, tão inteligente, tão entendedor, tão atento ao mundo, tão terno e tão sarcástico quanto o era aos cinqüenta. E há outros poucos, que enfrentam os oitenta  e os noventa com bizarria e graça. Mas, na minha família, nós não envelhecemos bem. Passou dos setenta e cinco, começamos a ficar esquecidos, repetindo histórias, dando mais importância ao passado que ao presente, desligando do mundo atual. E isso  quando conseguimos alcançar os setenta, o que é raro, porque na grande maioria vamos embora em redor da casa dos sessenta, um pouco antes, um pouco depois. Salvo minha avó Rachel, que chegou aos setenta e nove tão lúcida e lembrada (e mandona) quanto no passado, e minha bisavó Miliquinha alcançando os oitenta e sete,cega, cética, irônica,mais moça de espírito (embora num sentido contraditório e pessimista) do que a filha e algumas netas. 

    Quarenta e quatro anos, realmente, será uma boa idade para se ver o ano 2000. Mas na velhice, nos meus imaginários noventa anos, as novidades do tempo, os delírios da virada do século, francamente, o que podem dar é medo. Bem, medo, não, antes tédio. Enjôo dos prodígios mecânicos que eles terão inventado, das torres de centenas de andares, das loucuras astronáuticas, dos carros terrestres ou voadores correndo a mais de mil quilômetros por hora, dos transplantes de órgãos, da mocidade permanente conseguida a poder de bisturi e drogas. ah, se por acaso eu for viva no tempo dessas invenções, espero em Deus já estar bastante deteriorada para tornar qualquer reforma impossível. Não pretendo ser recauchutada, esticada, desplissada, recondicionada. De que serve renovar a cara se não se renova o coração? E, aliás, mesmo renovado o coração, não vejo  vantagem. Porque o renovado teria de abri mão da passada experiência, e então, sem minha experiência, ainda serei eu mesma? Com a minha velha identidade? em todas as religiões que fazem fé na reencarnação, um dado invariável é a amnésia que acompanha a encarnação  seguinte. O reencarnado jamais sabe nada das vidas anteriores que viveu. Porque não adiante o invólucro novo em  folha, se a alma é velha e batida por todas as antigas experiências. E, ao mesmo tempo, se a gente abandona o passado e o que foi, e viu e sentiu, então não é mais a mesma pessoa, perdeu por completo a identidade – e aí que adianta renovar-se, se não há consciência disso? 

    Pois quando, em  verdade, o homem só é homem pela sua consciência? 

    Não, digo aqui, solenemente: não  faço caso dos noventa anos, nem do ano 2000, com suas pompas e suas glórias. Mudanças são boas para ossos moços, e  cabeças moças e entranhas moças. O perecível só se dá bem com outro perecível. As coisas eternas, que a gente só aprende a valorizar adequadamente quando se faz velho – essas não precisam de máquinas nem de instrumentos, nem de edifícios, nem de nenhum prodígio mecânico. As palavras, os pensamentos têm seu valor inalterável. Veja-se Homero: o que dele ficou, ficou íntegro e absoluto. Mas as obras, de arte  e mecânica do seu tempo, o que resta? Uns cacos de templos, pedaços rotos de colunatas, restos desirmanados de anatomia de estátuas enterradas – relíquias que, para se apreciarem melhor, precisa- se recorrer à imaginação. Mas para apreciar Ilíada não é mister apelar para imaginação nenhuma – basta ler, basta ouvir. O pensamento, como um animal de sangue quente, é indivisível: pode morrer mas não  subsiste fragmentado. 

    Não sei se me expliquei direito, talvez só tenha me confundido. Mas o principal que eu pretendia declarar é que não estou pronta para enfrentar o ano 2000 nos meus 89 anos. Prefiro ir embora antes de entrar na fase da deterioração total, e, se o meu amigo J.C, não me engana, procurar descontar os pecados com  boas obras, obter algum saldo (talvez enfrentando uns anos de purgatório), e afinal pegar de minha harpa e ir cantar aos pés de Nosso Senhor – muito antes dos noventa. 

 

 

Nota 1 – em 2000, quando seu neto completaria 44 anos, Rachel de Queiroz recebeu, aos 89 anos,Título Doutor Honoris Causa da Universidade Estadual do Rio de Janeiro. 

 

Nota 2 –  Rachel de Queiroz superou a marca da família: morreu dormindo na rede  aos 93 anos. 

 

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