Paulo Emílio Azevedo
Foto de Filipi Itagiba
P: Nunca entendi o que faço. Quando alguém, por fim, parece ter compreendido, peço que me explique. Criar, ao contrário, do alento que se possa imaginar é arrumar um problema para si mesmo – um problema que a partir de então terá que resolver. Com exceção de trabalhos encomendados, ninguém lhe pediu nada para “criar”. Mas, se você tem a ideia e decide entrar num processo dessa envergadura deve saber que vai perder sua paz, caso tenha alguma. Bem, essa é a parte dolorosa. A parte boa é saber que criação é potência. E é aí que somos despertados em “ficcionalizar o mundo”, por sua vez construindo outro espaço-tempo – inventar é viciante, mas dispende muita energia e, na maioria das vezes, recursos que não se tem disponíveis.
Criar envolve etapas, mas o que lhe evoca vem por vias díspares e em contextos muito variados. Em meu processo o que posso dizer enquanto divisor de águas foi o nascimento do meu filho. Mas a “criança”, de modo geral, sempre teve uma presença na minha forma de pisar no mundo. Seja eu mesmo fugindo de casa, seja meu filho desequilibrando no meio-fio ou outra criança a atravessar a rua enquanto espera o sinal ficar vermelho. A questão é que sou daltônico, aí é que tudo se complica ou quicá me torno mais sensível à possibilidade de expor outra paleta de cores no mundo. Criar é olhar de novo e mais uma vez para essa pintura inacabada.
Criar, ao contrário, do alento que se possa imaginar é arrumar um problema para si mesmo - um problema que a partir de então terá que resolver.
P: Penso que a matéria ou as matérias que compõem essas formas de expressão (corpo, palavra, silêncio, pausa etc) são gramáticas políticas muito potentes, porém ainda pouco compreendidas em nosso meio e, ousaria dizer, por grande parte dos interlocutores que as produzem nas suas essências. Perscruto sempre dois papéis na minha ação: o antropólogo que interpreta por onde se anda e/ou aquilo que vê e ouve. Isso gera uma redação e essa redação precisa ser convertida em performance.
Artista é um ser decorativo. Arteiros mudam as coisas de lugar e ressignificam o valor de objetos em objetos estéticos
Nesse momento meu papel muda para aquela personagem social que põe a mão na massa: a lavadeira, o pedreiro ou o jardineiro. Não satisfeito opero o lugar do alfaiate – é preciso entender de molde e medida para poder deformar a seguir. Arte tem a ver com tear, com costura. E essa articulação que me fascina e me faz observar que ainda preciso entender melhor de arquitetura. O que espero? Não acredito em esperança, prefiro agir. Mas sim, estamos movendo algo e isso é interessante – quando as coisas saem do lugar levantam poeiras e desarranjam moléculas. Passada a névoa que daí emana, encontramos outros pontos a se explorar. Sou também apaixonado por Física, além de ser cinéfilo e sentir muita saudade do meu irmão caçula.
Desafio duplo situado nesse texto: primeiramente, no âmbito da personagem principal que semeia e atravessa a cidade vestindo e se despindo de diferentes modas (e modos) para abrigar uma multiplicidade de aproximações – uma criança, o próprio autor, cada ser humano sozinho nas multidões, tantas pessoas sem pares do outro lado da rua -, e em segundo lugar, pela diversidade nos temas e combustíveis desse material. A forma para dar conta do mesmo foi propor a narrativa em quatro partes: “Das crianças e os tantos pais”; “Das carências e solidões”; “Dos encontros por aí” e “Das tantas outras vidas”, mais um epílogo intitulado “Três atos de perplexidade”. Na parte I, álbuns com ou sem molduras entre filhos e pais. Não obstante, a presença do autor como articulador, observador, protagonista e ou mobilizador do jogo das tensões recorrentes. Na parte II, vê-se o abrigo de uma aderência com o intuito de tratar tais ingredientes, com menos apego e mais provocação. Na penúltima parte, a urbe aparece como cenário e enredo; é nela, através dela e com ela que os esbarrões e diálogos se estruturam e se surpreendem. Na Parte IV, tal desafio chega ao seu ápice conforme polissemia e hibridismo de palavras se justapondo e conversando entre ruídos e, outrora silêncios. O epílogo quando se fez necessário foi para deixar um rabisco ou garatuja tomar conta do corpo – um corpo cheio de tintas. Talvez colorindo mais esse mundo fosse possível dar a mão para se atravessar a rua. Mas não deu tempo, o sinal ainda estava vermelho.
Cia Gente
Criada em 2012, a companhia desenvolve projetos multifacetados que, muitas vezes, se encontram de maneira multidisciplinar, transitando entre dança, poesia, literatura, cinema e música. O grupo busca potencializar e estimular seus intérpretes a criarem, com base nas suas próprias experiências, estímulos que ocorrem dentro e fora das salas de ensaio. A proposta da Cia. se destaca no reconhecimento da diversidade cultural, nas possibilidades criativas e, sobretudo, nos protagonismos que surgem através desses intercâmbios. O trabalho é baseado em um movimento de articulação entre artistas, educadores, gestores e profissionais de diversas áreas.