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Excesso de trabalho, conto de Nelson Rodrigues

Excesso de trabalho, conto de Nelson Rodrigues

Nelson Rodrigues nasceu em 23 de agosto de 1912, na cidade de Recife, em Pernambuco. Ainda na infância, se mudou para o Rio de Janeiro. Mais tarde, se transformou em um dos dramaturgos brasileiros mais conhecidos do século XX. Ele também publicou romances, crônicas e contos. O autor, que faleceu em 21 de dezembro de 1980, no Rio de Janeiro, escreveu obras ambientadas principalmente no subúrbio dessa cidade. Em suas obras, ele mostra alguns comportamentos condenáveis pela hipócrita sociedade carioca.

Excesso de trabalho – Conto de Nelson Rodrigues

Era um pai muito escrupuloso. Sabendo que a filha estava com um romance, não perdeu tempo: — tratou de saber, direitinho, quem era o namorado. Durante quatro ou cinco dias, andou de baixo para cima, de cima para baixo, fazendo sindicâncias. Aconteceu, sistematicamente, o seguinte: — as pessoas interrogadas sobre os predicados do rapaz diziam sempre a mesma coisa:
— Muito trabalhador!
No fim de certo tempo, o velho estava crente de que nada caracterizava tanto o futuro genro como a sua fenomenal capacidade de trabalho. Deu-se enfim por satisfeito. Chamou a esposa e a filha. Andando de um lado para outro, ia dizendo:
— Bem. Andei tomando informações.
Fez uma pausa proposital. A filha, expectante, prendeu a respiração. Veio a pergunta:
— Que tal?
Seu Juventino estaca:
— Parece que é um bom rapaz, trabalhador e outros bichos.
Laurinha, que estava sentada, ergue-se, de olho aceso:
— O senhor então consente, papai?
Respirou fundo:
— Consinto.

O TRABALHADOR
Seu Juventino sempre tivera particular e feroz ojeriza pelos ociosos e pela ociosidade. A perspectiva de um genro laborioso o deslumbrou: “Esse é dos meus”, disse, esfregando as mãos, numa satisfação profunda. Laurinha, radiante, foi correndo dizer ao namorado: — “Papai é teu fã! Teu admirador!”. Raimundo, grave, pigarreia:
— Antes assim! Antes assim!
O namoro durou um ano e meio, pouco mais ou menos. Durante esse espaço de tempo, Raimundo vinha ver a namorada três vezes por semana. Chegava depois do jantar, passava meia hora com a pequena e partia, célere, afobado, para outro emprego. Trabalhava em três lugares diferentes e andava procurando uma quarta atividade. Dormia, todos os dias, às três horas da manhã e levantava-se às seis. Tanto trabalho teria que devastá-lo. E, de fato, o rapaz tinha um sono medonho, incoercível. Dormia no bonde, no ônibus, no lotação, sentado ou em pé. E, sobretudo, dormia ao lado da namorada. Parecia um cansado nato e hereditário. Impressionada por tamanha fadiga, Laurinha levanta certa vez a hipótese:
— Você não está trabalhando demais, hein, meu filho?
Era óbvio que sim. Raimundo, na ocasião, cochilava espetacularmente, recostado ao ombro de Laurinha. Despertou, porém, quase indignado:
— Minha filha, parte do seguinte princípio: — não existe o excesso de trabalho, percebeste? Nunca se trabalha demais!

HERÓI
Toda a família, com seu Juventino à frente, aplaudia esse dinamismo pavoroso de Raimundo. E Laurinha também, é claro. O máximo que a garota podia alegar é que, ao peso de tantos empregos e de tanto serviço, não sobrassem ao rapaz nem tempo, nem ânimo para o namoro. Ele passava semanas, meses, sem um carinho, um beijo, um galanteio. Laurinha, porém, tinha bastante discernimento para aceitar e compreender. De resto, o pai, a mãe, todo mundo vinha sugestioná-la: — “Tiraste a sorte grande! O Raimundo é um partidão!”. E quando, em pleno namoro, vencido pelo cansaço, ele se punha a dormir, o sogro ou a sogra corria a desligar o rádio com a recomendação:
— Não faz barulho, que o Raimundo está dormindo!


ENLACE
O fato era o seguinte: — o cansaço imenso, inenarrável do rapaz passava a ser um orgulho, uma vaidade para a família. Quando os dois ficaram noivos, foi até comovente. Seu Juventino abraçou-se chorando ao futuro genro. E soluçava: — “Meu filho! Meu filho!”. Assoa-se e declara, em alto e bom som:
— Eu sei, tenho certeza que um rapaz como você, trabalhador como você, fará a felicidade de minha filha!
Raimundo, com a exaustão de sempre, balbucia:
— Deus é grande! Deus é grande!
Três meses depois, houve o casamento.

ROMÂNTICA
Laurinha era, como ela própria dizia, “muito romântica”. Duas coisas a atraíam, no casamento, de uma maneira irresistível: — primeiro, a cerimônia religiosa, com o fabuloso vestido de noiva e toda a pompa nupcial; segundo, o que ela chamava, num arrepio, de “primeira noite”. Tinha uma amiga casada, aliás, desenvolta e sabidíssima, que afirmava:
— Todo o futuro do casamento depende da “primeira noite”!
Laurinha, trêmula, perguntava: — “É batata, é?”. A amiga suspirava: — “Espera e verás!”. Com o espírito trabalhado pela sugestão da conhecida, Laurinha sonhava, de olhos abertos: — “Se eu tiver que morrer, que seja depois da ‘primeira noite’. Antes, não”.
Pois bem. Casou-se e, depois da cerimônia religiosa, em grande estilo, com música, luminárias, partiu com o noivo para o apartamento do Grajaú, onde passariam a residir. Chegam, entram. Diga-se, a título ilustrativo, que, no carro iluminado, Raimundo chegara a cochilar. Laurinha, aflita, de véu, grinalda, o sacudira: — “Que coisa feia, meu filho! Acorda!”. Enfim, estão no apartamento. E chegou o momento em que Laurinha entreabre a porta do quarto e avisa:
— Pode vir, meu bem.
Em seguida, ela se coloca em pé, no meio do quarto. Veste a camisola do dia, transparente, um decote ideal. Nunca se sentira tão nua. Seus pés calçam chinelinhas brancas. Na sua imaginação de noiva, antevê o deslumbramento do ser amado. Mas os minutos se escoam e nada. Para si mesma faz o espanto: — “Ué!”. Até que vem espiar na porta. Eis o que vê: — o noivo, sentado numa poltrona, a cabeça pendida, dorme de uma maneira profunda, irremediável. No maior espanto de sua vida, e sem se lembrar de cobrir-se com um quimono, aproxima-se. Sacode-o: — “Dormindo, meu filho?”. O pobre-diabo levanta-se, em sobressalto. Vê, identifica a noiva, coça a cabeça: — “És tu?”. Diante dela, tem um desses bocejos medonhos. Laurinha, atônita, não sabe o que dizer, o que pensar. Raimundo a enlaça:
— Vamos, meu anjo?

PRIMEIRA NOITE
Estão dentro do quarto. A fadiga acumulada do homem que trabalha muito, trabalha demais, dá um ritmo lerdo a tudo o que ele diz, pensa ou faz. Não obstante, Laurinha comove-se outra vez. Oferece a boca fresca e linda:
— Beija, me beija!
Ainda não foi desta vez. Pois o noivo bate na testa:
— Cadê o despertador?
E ela:
— Pra quê?
Raimundo, aflito, anda de um lado para outro, procurando: — “Onde está a droga do despertador?”. Só falta olhar debaixo da cama. Laurinha insiste: — “Mas pra que o despertador?”. Ele pára no meio do quarto, irritado:
— Tenho que acordar cedo, carambolas! Tenho que trabalhar!
Laurinha recua:
— Você vai trabalhar amanhã? Vai? Amanhã?
Explode:
— Claro! Vou, sim! Tenho um serviço urgentíssimo. Marquei com o chefe às sete da manhã!
A pequena senta-se numa das extremidades da cama. Custa a acreditar: — “Não é
possível!”. Ele, porém, acaba de descobrir o despertador detrás de uma jarrinha de
flores. Exulta, aperta o relógio de encontro ao peito; e vira-se, eufórico, para a mulher:
— “Agora eu posso dormir tranqüilo!”. Coloca o despertador em cima da mesinha-decabeceira. Laurinha, de braços cruzados, sem uma palavra, acompanha os movimentos do marido. Ele se põe de cócoras diante do camiseiro, apanha o pijama e vai mudar de roupa no banheiro. Volta, de pijama e descalço, bocejando que Deus te livre. Diante da mulher, Coçando o peito, propõe:
— Queres me fazer um favor? De mãe pra filho? É o seguinte: — eu estou num prego danado. Vamos fazer o seguinte:— tu me deixas dormir uma meia hora e, depois, me acordas. OK?
— OK.

ALUCINAÇÃO
Foi até interessante. Uma vez obtida a autorização, ele desaba na cama, como que fulminado pelo sono. Laurinha contempla aquele homem com certo espanto e asco. Levanta-se; marca o despertador de seis para doze. Em seguida apaga a luz e vem para a janela, espiar a rua e a noite. Assim permaneceu, em dilacerada vigília. Pensa: — “Foi-se por água abaixo a minha primeira noite!”. Três ou quatro horas depois, continuava na janela. Súbito, ouve um rumor embaixo: — era o leiteiro que, naquela manhã, começava o fornecimento dos novos fregueses. Então, dá nela uma fúria súbita, uma cólera obtusa e potente. Sem rumor, deixa o quarto e desce, pela escada, os dois andares do apartamento. Leva o quimono em cima da camisola diáfana. Abre a porta da rua e sai para o jardim; alcança o leiteiro, quando este partia, empurrando a carrocinha. Ele vira-se, assombrado. Laurinha se põe na ponta dos pés e o beija na boca, com loucura.

 

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