Fragmentos de um diário poético
Apresentamos cinco poemas de Sara de Athouguia Filipe, jovem poeta portuguesa em andança pelo mundo, que ama a língua portuguesa em que nos entendemos e desentendemos.
Sara Athouguia nasceu num final de tarde, em março de 1993. Curiosa de viver, em criança sonhava viajar pelo mundo e pelo tempo. Atualmente, é doutoranda em História, no Instituto Universitário Europeu. Vive entre Florença e Frankfurt, embora a sua alma seja lusitana. A sua relação com a poesia é inconformada, porque é através dela que persegue o grotesco do banal, lutando contra os monstros da vida real e da sociedade atual.
Sushi
Ela põe o sashimi
Todo na boca.
Mastiga,
Fecha os olhos,
Geme incrédula de prazer.
É só salmão,
Mas podia ser sexo,
Daquele abrutalhado, que enoja,
Porque o wasabi também arde,
Sobretudo se o sashimi
Não for molhado em soja.
Foda (substantivo feminino)
Fode-me
Forte,
Fácil.
Fode-me
Até doer de prazer.
Fode-me bem,
Que eu fui feita
Para foder.
Foder é poder
E eu também te fodo.
Ainda que não te penetre,
Deixo que entres
Por mim adentro,
Tu homem, eu mulher.
Deixo e quero
Que me fodas
Porque foder é querer.
Eu, mulher,
Deixo que me fodas
Porque te quero ter.
Foder, palavra feia
E tão grande
Que é palavrão
E enche mais a boca
Do que ’puta’ ou ‘cabrão’.
Em boca alheia,
Foder é invasão,
É reclamar posse
Do que não se tem.
É também o medo
De ser fodida à força,
Como crime
De quem me fode,
Um tirano de pila dura
E de cérebro mole
Que me oprime,
Que me reprime.
Esse que me tortura,
Amo que não ama,
Déspota num regime
Contra vaginas e conas.
Na boca do outro,
Foder é perversão,
É a subversão
Dos ‘bons’ costumes,
Do poder instituído,
Da hierarquia de Adão.
Na minha boca,
Foder é escolher,
Quando me apetece,
Porque posso,
Porque o outro me quer,
E porque ser Mulher
É mais do que ser corrompida,
É mais do que ser fodida.
Ser Mulher
É romper,
É bem foder!
A torneira está a pingar
A torneira pinga
Ou são gotas,
Gotas que dela
Vão pingando.
A Tânia é surda,
O Álvaro é cego
E a torneira continua
A pingar.
Plic … plic … plic …
A Tânia vê,
O Álvaro ouve
Que a torneira está
A gotejar.
Gotas que batem,
Gotas que fogem,
Que não podem parar.
As gotas
Que a Tânia não ouve,
Que o Álvaro não vê,
Mas que estão a pingar.
Chovem para a pia
Onde os pratos
Continuam por lavar.
Plic … plic … plic …
Ainda há restos
De comida no prato,
Restos de quem desistiu.
Uma colherada de arroz
Que ficou por comer
E que agora transborda
Em água parada,
Talvez contaminada.
Plic … plic … plic …
São as gotas que caem,
Que inundam de ver,
Que agastam de ouvir,
Mas são só gotas,
Canalizador para quê?
A Tânia não as ouve,
O Álvaro não as vê.
São gotas que caem
Da torneira que pinga.
São inofensivas gotas
Que continuarão a cair
Até que alguém
Escutando as veja
E vendo as escute.
Até lá,
Plic … plic … plic …
A torneira continuará
A pingar.
‘A outra senhora’
Diz que a Alzira morreu,
Estremunhada de passado,
Incrédula de futuro.
Diz que morreu,
Ouvi dizer por aí
Que a encontraram morta,
Mas de que morreu ela?
“Sei lá, foi do coração.”
Eu cá gostaria de perguntar:
Estaria partido
Ou somente podre?
É que a Alzira era tão velha
E tão antiga
Que podia ser ela mesma
‘A outra senhora’
Dos tempos de que ninguém
Quer falar.
A Alzira era tão velha
E tão antiga
Que morreu de tempo a mais,
Fora de tempo,
E já ninguém
A quer lembrar.
Suicídio
Pensei matar-me.
Quem nunca pensou?
Os ricos porque são ricos,
Os pobres porque são pobres.
Não sou rico
Nem pobre,
Mas já pensei matar-me.
Saltar para a linha,
Tomar uns comprimidos,
Cortar os pulsos.
Opções não faltam
Para bater a bota.
São os dias que nos matam,
O dinheiro,
A miséria
De ser pobre e de ser rico, também.
Pensei matar-me
Quando estava feliz
E quando estava triste,
Porque ambas são desculpas
Legítimas para ir embora,
Para esse sítio sem lugar,
Sem tempo,
Sem consciência…
Esse sítio que um dia foi nascer
E que hoje só pode ser morrer.
Mais da autora
Nasci em Portugal. Falo com sotaque lisboeta.
Digo ‘refogado’ em vez de ‘estrugido’.
Digo ‘cabide’ em vez de ‘cruzeta’.
Digo ‘escorregar’ em vez de ‘esvarar’.
Digo ‘autocarro’ em vez de ‘ônibus’ ou de ‘machimbombo’.
Sim, esse é o meu sotaque — mas a minha pátria é toda a língua portuguesa.
A língua portuguesa de Camões, de Pessoa, de Sophia de Mello Breyner Andresen, de Eça de Queiroz e de Saramago.
A língua portuguesa de Carlos Drummond de Andrade, de Cecília Meireles, de Hilda Hilst, de Machado de Assis e de Jorge Amado.
A língua portuguesa de José Craveirinha, de Noémia de Sousa, de Uanhenga Xitu, de Vasco Cabral, de Luís Romano e de Manuela Margarido.
A língua portuguesa de Laxmanrao Sardessai, de Henrique de Senna Fernandes, de Afonso Busa Metan e de muitos, muitos outros por esse mundo fora…
A língua portuguesa que é muito mais do que sotaques ou do que o posicionamento de pronomes clíticos.
A língua portuguesa que está acima de cores, de ideologias ou de fronteiras.
A língua portuguesa em que nos entendemos e desentendemos.
A língua portuguesa em que (nos) sentimos.
A língua portuguesa em que os nossos pensamentos são narrados, em que o nosso ‘eu’ é formulado e a nossa intimidade é construída.
A língua portuguesa que não é só dos portugueses. Espalhou-se pelo mundo e tornou-se muito mais do que o idioma falado em Portugal.
Falar do dia de Camões, de Portugal e das comunidades portuguesas é também falar da nossa língua, desse património enorme que nem sempre oferecemos, também impusemos. Hoje já não é império. Hoje não pode ser saudade.
Nasci em Portugal, por acaso ou destino; mas que bom é estar em casa na Língua Portuguesa!