Gilka Machado
Polêmica e precursora da poesia erótica, Gilka Machado é mais uma das importantes escritoras brasileiras. Encontra-se entre as primeiras defensoras dos direitos femininos no país. “Plebéia” e “matrona imoral” foram algumas alcunhas que teve de suportar em vida. Recebeu o Prêmio Machado de Assis, concedido pela Academia Brasileira de Letras, em 1979.
"Sonhei em ser útil à humanidade. Não consegui, mas fiz versos. Estou convicta de que a poesia é tão indispensável à existência como a água, o ar, a luz, a crença, o pão e o amor".
Gilka da Costa de Mello Machado nasceu no Rio de Janeiro (RJ) no dia 12 de março de 1893.
Casou-se com o poeta Rodolfo de Melo Machado em 1910 e teve dois filhos: Helio e Eros. Viúva aos 30 anos, lutou, arduamente, para sobreviver e educar os filhos, sem atender às soluções que repugnavam o seu pudor. Em 1965, ano do cinquentenário de sua estreia, inseriu na antologia “Velha Poesia”, grande número de inéditos que falavam de seus desenganos e na proximidade da morte.
Seu interesse pela poesia começou na infância, mas sempre precisou conciliar a vida difícil com a atividade literária. Já casada e com filhos, trabalhou como diarista na Estrada de Ferro Central do Brasil, recebendo um magro salário. Estreou nas letras vencendo um concurso literário do jornal A Imprensa, dirigido por José do Patrocínio Filho. Na ocasião, houve manifestação negativa, qualificando seu trabalho como “próprio de uma matrona imoral”. Os críticos mais novos, porém, reconheceram a importância da sua proposta, que pretendia a libertação dos sentidos e dos instintos.
A obra de Gilka Machado pertence à escola poética do Simbolismo e adota suas imagens mais recorrentes. Contudo, caminhou para a ruptura com seus contemporâneos, não só pela ênfase na temática do erotismo, mas também pela referência a aspectos sociais que oprimem a mulher. Utilizou-se, quase sempre, de um conjunto de elementos simbólicos com os quais introduz a sua mensagem: a flor, os gatos, a noite, o vento. Seu objetivo é discutir o desejo feminino e executa o seu propósito empregando recursos de linguagem que invocam sensações.
Como poeta, foi combatida veementemente por parte dos escritores modernistas, mormente pelo poeta, romancista e ensaísta paulista Mário de Andrade que a achava escandalosa.
Os poemas audaciosos de Gilka desafiavam os preceitos e a conduta moral da época, colocando em pânico os moralistas do início do século. Seus versos falam da condição feminina, expondo de forma ousada para a época o desejo da mulher se libertar das amarras machistas daqueles tempos.
Gilka Machado foi umas das pioneiras no Brasil a escrever poesias de cunho erótico. “Costuma-se lembrar dela quando se fala do erotismo tratado poeticamente pela mulher, porém, sabe-se, é claro que existiram precursoras.” Uma delas Ibrantina Cardona.
Para Drummond:
“Seria falso dizer que a poesia de Gilka era puro sensualismo. Com elementos simbolistas em sua formação, tinha também algo de misticismo, e às vezes acusava preocupações de ordem social, chegando a uma espécie de anarquismo romântico.”
Gilka, em uma época na qual as mulheres eram confinadas à uma vida doméstica e recatada, rompeu com as barreiras do decoro público, chocou a sociedade ao escrever e publicar sobre as paixões e desejos proibidos à mulher.
Escreveu para a Gazeta de Notícias em 1924:
“Quando publiquei meu primeiro livro, cujos versos haviam sido escritos dos treze aos dezessete anos, o rumor de escândalo que então me chegou aos ouvidos atônitos de surpresa a pouco e pouco foi ecoando na minha alma, nela despertando uma dúvida terrível, respectivamente à minha própria personalidade... Houve dentre os meus juízes opiniões inteiramente contraditórias: dos que, desconhecendo por completo minha pessoa, acusavam-se de andar pelo club dos Diários, ostentando a minha nudez, e a daqueles que, informados de minha pobreza, atribuíram a suposta brutalidade das expressões da minha arte à minha vida plebéia.”
Gilka participou dos movimentos em defesa dos direitos das mulheres e fez parte do grupo da professora Leolinda Daltro que fundou em dezembro de 1910 o Partido Republicano Feminino, do qual foi segunda secretária.
Recebeu o Prêmio Machado de Assis, concedido pela Academia Brasileira de Letras, em 1979.
Faleceu no Rio de Janeiro, a 17 de dezembro de 1980.
Meu Glorioso Pecado
(da série de alguns)
Se te injuriei, por uma rebeldia
dos meus nervos exaustos de pesar,
pensa com que perversa hipocrisia
tu me agastaste para me magoar!
Pensa que, só por teu sabor de um dia
– glória de uma conquista singular –
minha vida perdeu toda a alegria,
é uma morte que vivo devagar!
Sempre a revolta vem de uma agonia:
a injúria ser um beijo poderia,
teu beijo envenenou-me o paladar
Medita alma volúvel, alma fria:
– Quanta vez uma ofensa acaricia!
– Como um carinho sabe nos matar!
Meu Glorioso Pecado II
Quantas horas felizes, quantos dias
nos contemplamos sem jamais trocar
uma frase! – Eu temia… Tu temias…
Mas como era expressivo nosso olhar!…
Nem uma frase! E tantas melodias
no meu, no teu silêncio, no do mar,
no do céu, no das árvores sombrias,
como tudo se amava sem falar!
Trocamos o vocábulo e (oh! tristeza!)
Quantas injúrias, que contradição
nessas palestras de alma
em ciúme acesa!
Ah! se mudos ficáramos então,
não profanara o orgulho
e a singeleza
das palavras sem voz
do coração!
Meu Glorioso Pecado III
A que buscas em mim,
que vive em meio de nós,
e nos unindo nos separa,
não sei bem aonde vai,
de onde veio,
trago-a no sangue
assim como uma tara
Dou-te a carne que sou…
Mas teu anseio
fôra possuí-la –
a espiritual, a rara,
essa que tem o olhar
ao mundo alheio,
essa que tão somente
astros encara
Por que não sou
como as demais mulheres?
Sinto que, me possuindo,
em mim preferes
aquela que é
o meu íntimo avantesma…
E, o meu amor,
que ciúme dessa estranha,
dessa rival
que os dias
me acompanha,
para ruína gloriosa
de mim mesma!
Ser mulher, vir à luz trazendo a alma talhada
para os gozos da vida, a liberdade e o amor,
tentar da glória a etérea e altívola escalada,
na eterna aspiração de um sonho superior…
Ser mulher, desejar outra alma pura e alada
para poder, com ela, o infinito transpor,
sentir a vida triste, insípida, isolada,
buscar um companheiro e encontrar um Senhor…
Ser mulher, calcular todo o infinito curto
para a larga expansão do desejado surto,
no ascenso espiritual aos perfeitos ideais…
Ser mulher, e oh! atroz, tantálica tristeza!
ficar na vida qual uma águia inerte, presa
nos pesados grilhões dos preceitos sociais!
Esboço
Teus lábios inquietos
pelo meu corpo
acendiam astros…
e no corpo da mata
os pirilampos
de quando em quando,
insinuavam
fosforecentes carícias…
e o corpo do silêncio estremecia,
chocalhava,
com os guizos
do cri-cri osculante
dos grilos que imitavam
a música de tua boca…
e no corpo da noite
as estrelas cantavam
com a voz trêmula e rútila
de teus beijos…
Volúpia
Tenho-te, do meu sangue alongada nos veios,
à tua sensação me alheio a todo o ambiente;
os meus versos estão completamente cheios
do teu veneno forte, invencível e fluente.
Por te trazer em mim, adquiri-os, tomei-os,
o teu modo sutil, o teu gesto indolente.
Por te trazer em mim moldei-me aos teus coleios,
minha íntima, nervosa e rúbida serpente.
Teu veneno letal torna-me os olhos baços,
e a alma pura que trago e que te repudia,
inutilmente anseia esquivar-se aos teus laços.
Teu veneno letal torna-me o corpo langue,
numa circulação longa, lenta, macia,
a subir e a descer, no curso do meu sangue.