Márcia Silveira (@marcia_silveira) possui contos e crônicas publicados em diversas antologias. É formada também em Design Gráfico e atuou durante muitos anos como fotógrafa. Desde 2019 é colunista de crítica literária do jornal Diário do Rio. Escreve também a newsletter Página 23. Inventário de Vagas Lembranças (Editora Penalux, 82 pág) é o seu livro de estreia.
A casa rosa
Uma das minhas cores favoritas é rosa. Nunca soube o porquê, até que minha mãe um dia me contou que meu pai gostava de pintar a nossa casa de rosa. Eu não me lembro da casa rosa, mas adotei essa explicação para o meu gosto.
Nós morávamos em um terreno grande, com várias casas. A minha casa, a rosa, era a última, ficava no final do terreno. Eu morava lá com meu pai, minha mãe e minhas três irmãs. Minha avó paterna morava ao lado. Na casa em frente à dela, o irmão do meu pai, com a mulher e os quatro filhos, meus primos, todos meninos. Se não me engano, havia outras casas, onde moravam outras pessoas que não eram da família. De todos, eu era a caçula, com uma diferença bem grande para as irmãs e os primos, que já eram adolescentes.
Todo fim de ano meu pai pintava a casa. Uma história que sempre ouvia era que, quando minhas irmãs eram pequenas, elas rabiscavam as paredes. Minha mãe brigava, dizia que não podia, mas meu pai sempre aliviava, dizendo: “Deixa, depois a gente pinta de novo.”
Na casa rosa tinha um sofá azul. Lembro que no dia em que nos mudamos de lá, a casa estava uma bagunça por causa da mudança e o sofá já estava na varanda. Eu gostava de comer milho na espiga, então minha mãe me deu um – provavelmente para que eu ficasse quieta comendo e não atrapalhasse a mudança. Eu peguei minha espiga de milho verde e, vestida com meu short vermelho favorito, sentei na varanda rosa, no encosto do sofá azul. Eu comia e observava o movimento, sem entender direito o que mudaria na minha vida a partir daquele dia.
Acontece que o que mudou foram as cores. Eu e minha família fomos morar no Méier, numa casa branca. O portão da nova vila não era verde, mas, se bem me lembro, cinza. Era o início de uma nova vida, sem dúvida. Uma vida em tons mais neutros, em que a cor rosa virou apenas uma história a ser contada.
Vinte e três de março
Quando fecho os olhos e tento buscar minha lembrança mais remota, a imagem que me vem é apenas um flash de um dia em que estava na casa onde morava no bairro de Vaz Lobo, subúrbio do Rio. Não era um dia qualquer, era meu aniversário de quatro anos. Eu estava ansiosa por aquela data, porque, dias antes, minha mãe havia prometido fazer um bolo.
A imagem não é nítida. Era tudo sombra, a casa estava escura, mas pela janela via o dia claro lá fora. Eu, muito pequena, olhava para o alto enquanto falava com alguém, perguntando pelo meu bolo. E esse alguém, não sei se minha mãe ou uma de minhas irmãs, dizia, talvez brincando, que os planos haviam mudado, não teria mais bolo. Minha recordação, mais do que da cena, é do sentimento que me tomou naquele momento: a decepção.
Quando completei dezesseis anos, havia acabado de mudar de colégio. Tímida, ainda não conhecia ninguém na nova turma, então minhas amigas eram, ainda, as do colégio antigo, onde eu havia estudado durante cinco anos. Para comemorar a data, resolvi marcar um encontro em uma lanchonete que ficava perto da casa delas, já que eu era a única que morava longe. Eu tinha um namorado na época e fui com ele para a lanchonete. Minutos depois, minha irmã chegou com uma amiga. O tempo passava e nenhuma das convidadas chegava, então resolvi ir até um orelhão (eram os anos 90) e telefonar para uma delas. O que ouvi foi:
“Ué, a fulana não foi? Achei que ela fosse…”
Entendi, então, que todas haviam pensado a mesma coisa: alguém vai, então não preciso ir. Entendi também que elas não eram tão amigas quanto eu imaginava. Ali, na frente daquele orelhão, mais uma vez fui tomada pela decepção. Mais uma vez, era dia 23 de março.
Eu não gosto de comemorar meu aniversário. Apesar de ter boas memórias de outros anos – inclusive de uma festa surpresa preparada pelos amigos do novo colégio – e de já terem se passado quase trinta anos, uma sensação de desconforto segue entranhada. Claro lá fora, sombra aqui dentro. Grupos de amigas e amigos vêm e vão e há sempre o risco do desapontamento. São pessoas, afinal. Nos últimos anos, tenho saído para jantar com meu marido e meus filhos. Tem sido o suficiente. Nem faço mais questão de bolo.
Falta
Para você, tristeza se curava com Rivotril ou uma ida ao cabeleireiro. Você nunca entendeu a minha condição; dizia que eu precisava era deixar de ser nervosa. Eu não me chateava, achava graça. Eu era mesmo um pouco nervosa.
Quando você se foi, nem Rivotril deu jeito. Foram várias as idas ao cabeleireiro e as lágrimas não secaram. Poucos veem as cicatrizes que o corte moderno do meu cabelo esconde. O nervosismo se transformou numa calma mórbida, de inércia, de um profundo não saber o que fazer. Paralisei.
Tatuei seu nome, mas já era tarde. Não pude mais ver você sorrindo e dizendo que eu só invento moda. Se você ainda estivesse aqui, eu seria diferente. Seria mais eu. Sem você não tenho raízes, sou solta no mundo. Eu me perdi de mim. Agora quem é que vai me dizer para não sair sem batom e brinco? Quem vai me amar incondicionalmente?
Você foi embora e o tempo começou a passar arrastado. Nas ruas, tudo acontece em câmera lenta. As cores esmaeceram, a vida desbotou. O som ambiente é uma música morosa e melancólica – e algumas vezes o disco arranha. A música trava, o tempo para. Fecho os olhos para ouvir o silêncio, mas é um vazio pesado, o da saudade. Pesa no peito, dói na alma. Depois que você se foi, ficou mais doída essa falta de som, porque ela denuncia a falta que você me faz.
Falta. Nada é completo e nunca mais será. Falta você.