JESSICA BACUREVER
Instigante e provocativo, Gustavo Matte lança seu olhar de crítico literário para o filme francês Jéssica Forever e acaba revelando também algumas de suas impressões sobre Bacurau, sucesso de público em 2019 que ganhou destaque internacional em nossa recente produção cinematográfica.
Bacurau, goste você ou não (*), é uma obra marcante (o Terra em Transe da nossa geração?), e talvez até continue rendendo debates e leituras pelas décadas e décadas – mas, longe de ser o filme mais importante da minha vida, talvez tenha sido crucial por, involuntariamente, levar-me a conhecer outro, este sim o verdadeiro evento cinematográfico do meu ano de 2019 e que tem me deixado inquieto em meus pensamentos enquanto cozinho, olho pela janela do ônibus ou mesmo quando sento pra tentar trabalhar em qualquer outra coisa. De maneira que, ontem, desisti de todo resto e resolvi assistir novamente à Jessica Forever, da talentosíssima dupla francesa Caroline Poggi e Jonathan Vinel, e escrever esta resenha para ver se organizo as ideias e me livro da obsessão.
Acho importante esclarecer, antes que alguém comece a esperar grande coisa, que não trabalho com cinema e não entendo muito sobre o métier, mas sou crítico literário e costumo acompanhar a produção cultural contemporânea mais ou menos de perto. Interesso-me pelas maneiras com que o debate público acaba reverberando na produção artística brasileira e, inversamente, como a obra de arte reverbera de volta ao ser recebida pela sociedade – e Bacurau, tanto pelo discurso fílmico “em si” quanto pelos aspectos “extra-fílmicos” de sua recepção tem sido um prato cheio que venho tentando saborear na medida do possível. Foi por causa disso que, ao ler a sinopse de Jessica Forever e assistir ao trailer, brinquei: “parece um Bacurau francês”. Isso antes de assistir ao filme. Cheguei a convidar amigos para irem comigo assistir ao “Bacurè”, supondo que fosse encontrar a mesma espécie de impulsos que levaram Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles a filmarem nosso faroeste distópico do sertão. E admito que, para a minha surpresa, o paralelo não é apenas possível como pode render bons resultados críticos.
Não creio que consiga levar a tarefa ao limite, mas, se alguém quiser algum dia se ocupar mais longamente de uma leitura comparada entre os dois, atentem para o fato de que ambos, Bacurau e Jessica Forever, são filmes que imaginam o futuro pelo ponto de vista de populações marginalizadas e perseguidas até a morte por alguma espécie de força hegemônica (seja o colonialismo alegorizado em Bacurau ou a sociedade policial em Jessica Forever). Para isso, porém, nem um nem o outro precisam forçar a barra na imaginação ou nos efeitos especiais: bastam os cenários bastante prosaicos de um pequeno vilarejo rural no nordeste brasileiro ou de uma ilha de veraneio na França, aos quais se adicionam elementos tecnológicos relativamente ordinários – os drones – para representar a perseguição do inimigo e dar o tom futurista.
De qualquer maneira, há entre eles uma diferença crucial: o clima distópico em Bacurau deriva em grande parte do aspecto de “terra sem lei”, construído por alguns signos cinematográficos como as transições wipe (pois me fizeram pensar nos faroestes antigos e no estilo da montagem dos Star Wars de George Lucas) mas, sobretudo, pelo tema brasileiríssimo da confusão público-privado que aparece encarnada no político corrupto que é prefeito da cidade; em Jessica Forever, por outro lado, o que temos é a filmagem de um cenário impecável, com casas bem cuidadas, grama aparada, asfalto novo etc., mas de ruas sempre vazias – a não ser pelos órfãos, justamente os marginais do filme. Os “civis”, em J. Forever, só habitam o mundo no shopping center e no interior de suas casas – ou seja, circunscritos aos espaços privados. A recorrência de paisagens suburbanas desabitadas, mas sem sinal de abandono, gera um aspecto angustiante de apocalipse pela via da privatização total da vida, na qual a convivência humana mediada pela rua deixa de existir por completo. Isso dá à tragédia neoliberal representação tão convincente (e tristemente poética) que não consigo lembrar de já ter experimentado algo tão assombroso na mais imaginativa e exuberante ficção pós-apocalíptica a que tenha assistido na vida.
Talvez a angústia seja tão poderosa por lembrar uma sensação de domingo – o mais pós-apocalíptico dos dias, de viscosidade, estupidificação e melancolia. No mundo onde a vida tornou-se um eterno domingo, em que o barulho do vento parece ter mais a dizer do que as palavras incertas de alguns garotos sem alegria, Jessica surge como a mãe gentil que resolve os problemas com abraços ternos e sussurros beirando o erotismo: “às vezes a gente só precisa que alguém nos diga que vai ficar tudo bem”, ela diz, afável a ponto de quase me fazer chorar; oferece colo e escuta para homens grandes e frágeis que não cabem em lugar nenhum, nem em suas camas – se você prestar atenção à desproporção do tamanho de Raiden encolhido em seu quarto enquanto se agarra no travesseiro.
Jessica Forever é o Emo da ficção distópica. Os órfãos adotados por ela são, de fato, homens atrasados em seu amadurecimento emocional (meio crianças, meio adolescentes) e precisando urgentemente de experiências ou contatos intersubjetivos que os ajudem a elaborar seus sentimentos: “queria falar com os outros sobre isso, mas não sei como”, pensa o sorumbático Julien a respeito da saudade que sente do amigo Kevin, pouco antes de suicidar-se ateando fogo ao próprio corpo. Morre calado, parado, enfrentando com serenidade plástica a própria escolha – e numa composição de beleza visual impressionante, sobretudo pela economia elegante que, aliás, é um dos acertos centrais desse filme.
A mise-en-scène favorece imagens límpidas, sem poluição visual, com disposições de atores e objetos de cena rigorosamente pensadas. O gesto artístico do arranjo de cada coisa no exato lugar em que está fica estampado na tela com serenidade, e inclusive grande parte das cenas são efetivamente “posadas” para a câmera, numa mistura de retratismo barroco-renascentista que me fez pensar, mais de uma vez, em telas como Os síndicos da guilda ou A lição de anatomia, de Rembrandt. Algumas vezes pensei também em cartazes de propaganda de relógio, joias ou perfumes, produtos geralmente vendidos sob atmosfera de sofisticação e elegância – o que é muito interessante, porque faz da referência à tradição da pintura ocidental uma espécie de atualização do ponto de vista distópico pela aparência clean da publicidade.
É verdade também que grande parte do aspecto naïf do filme surge da felicidade infantil, boba mesmo, que os homens-meninos obtêm do contato com objetos de consumo de toda espécie, do trivial ao artigo de luxo. Ao precisarem mudar para uma nova localidade a fim de resguardar a própria integridade física, a principal preocupação de Michael é conseguir encontrar no supermercado o seu cereal matinal favorito. Em outra cena, quando o desânimo geral chega ao auge, Jessica resolve reanimá-los indo sozinha ao shopping e voltando carregada de compras (sabe-se lá de onde veio o dinheiro), que presenteia aos garotos numa variedade que vai de guloseimas e peças simples de roupas a jet skis e uma motocicleta esportiva. É como se ela, neste caso, fosse veículo para a satisfação do desejo de consumo infantil dos garotos – um consumo bastante onírico, diga-se de passagem, feito sem o intermédio do trabalho ou do dinheiro, e portanto levando a hierarquia das classes sociais ao mesmo lugar de suspensão esquisita com a qual nos deparamos no mundo da publicidade quando nos apresenta qualquer de seus produtos como algo ao alcance de todas as mãos.
De qualquer forma, como estamos cansados de saber, o passeio pelo shopping e o acesso livre aos objetos de consumo não resulta na satisfação da solidão e do vazio interior. A única coisa que parece ser capaz de suspender a melancolia crônica com alguma efetividade ao longo do filme é a busca por contato humano sincero. Por isso, Jessica e seus garotos se esforçam para não perder o sistema de vínculos afetivos que os mantêm unidos e com uma sensação de localização firme no meio da destruição de orientações e verdades da experiência sensível pós-moderna. A auto-derrisão e a ironia (formas discursivas da impossibilidade de contato consigo mesmo e com os outros) são aqui substituídas pela vivência sincera e sem duplo-sentido dos sentimentos e afetos; e pela busca vagarosa, paciente e cultivada dos gestos que caminhem na direção do cuidado de si e dos seus, num abraço fraterno.
A verdade é que me senti abraçado. Quase fui às lágrimas em uma ou outra ocasião, da mesma forma como me senti contagiado pela vingança popular-coletiva levada a cabo em Bacurau. Estava mesmo precisando disso. Acho que todos estamos.
Não é?
Aqui os filmes entram em núpcias e saio de cena. Seus resultados são pares perfeitos em 2019: restituir nossas forças, restituir a beleza; a organização coletiva, a elegância e a intersubjetividade. Restituição política? Sim. Pero aún más: restituição poética, estética e da sensibilidade.
Jessica Bacurever!
* Eu, por exemplo, sou mais do time dos que não gostaram tanto. Admito que saí exultante do cinema após a catarse revolucionária que inspira, mas o filme acabou envelhecendo mal dentro de mim. Hoje, penso nele como um discurso acuado da esquerda de classe média formulando uma ideia redentora de “povo” para vingar-se dos próprios fracassos e frustrações políticas recentes – e que aconteceram, diga-se de passagem, por sua (nossa) própria incapacidade de conversar com esse mesmo “povo” que tanto idealizam. Creio que justamente essa romantização de um “povo” inerentemente revolucionário seja parte do complexo de coisas que têm impedido os intelectuais brasileiros, mais das vezes socioeconomicamente privilegiados, de compreender o que mora no coração das classes populares e quais as suas demandas políticas. Não é de surpreender que só tenham visto Bolsonaro surgir quando já era tarde demais, e que estejam ainda hoje surpresos.