Jornalista estreia na literatura com poema sobre morte de John Lennon
A jornalista paulistana Renata de Alcântara Stuani (instagram @renata.stuani) faz estreia vigorosa na poesia com o livro Melancolicamente, editado pela Luva Editora do Rio de Janeiro, à venda na livraria Martins Fontes de São Paulo. A política, a psicanálise, a tecnologia e até a música pop são base para a construção de poemas de grande musicalidade.
Um dos destaques do livro é uma crônica escrita de maneira poética intitulada “Lennon Está Morto”. Há 42 anos, no dia 8 de dezembro de 1980, a escritora era uma criança quando ouviu no rádio a notícia sobre o assassinato do músico dos Beatles, John Lennon. No caminho para a escola, em São Paulo, contou a notícia a seu pai, que adorava a banda britânica. A reação inesperada do pai é o mote para uma série de reflexões sobre a morte, a política e a perda da inocência.
Segundo a escritora, o texto é o que mais emociona os leitores do livro, que tem mais de 100 poemas. “Alguns dos meus leitores se recordam exatamente de onde estavam quando souberam da morte de Lennon; e outros que nem eram nascidos quando isso aconteceu se emocionaram também”, diz Renata. Segundo ela, o trágico destino de Lennon deve ser relembrado até hoje como um alerta para todos os artistas diante da intolerância. “Um músico multimilionário e poderoso é morto a tiros por um fanático na frente de sua própria casa; como isso foi possível?”.
Veja abaixo íntegra do poema:
Lennon está morto!
Papai ia alegre e assoviando
no nosso fusca branco
me levar para a escola
E eu não podia de tanta
aflição
Eu estava frenética e quase feliz
Eu tinha 10 anos
e queria ser a primeira a
a contar
a novidade
em primeira mão
– Pai, mataram um dos Beatles!
Meu pai com a mão
na condução
disse
– Quê?!!
– Mataram aquele
que se chama John!
Meu pai parou.
O carro.
Ligou.
O rádio.
– Que história é essa?
Aquele de óculos?
Eu ia contando, quase gritando
– Mataram a tiros! Mataram o Beatle!
Papai ficou
/Mudo/
Eu nunca tinha visto
meu pai
com a cara
de quem vai chorar
(que eu veria anos depois)
Mas depois de contar
a coisa contada
eu tinha ainda muito o que falar:
da minha nova professora
e de tudo o que aprontava a
minha amiga Chris
As coisas mais graves
não abriam fendas
no meu coração
As dores grandes
tinham a premência
de um risco de giz
E tudo era urgente
e o triste sumia
com o prenúncio
de um Natal feliz
Mas meu pai não me ouvia
Não me ouvia mais
Na frente da escola
eu disse
– Tchau, pai…
Ele me olhou
mecanicamente
e o seu assovio
ficou esquecido
no banco de trás
E pela primeira vez
eu senti
que meu pai não estava
que nem me escutava
e que nem mesmo eu
para ele importava
Meu pai era agora um
só pensamento
Mataram John Lennon!
O tiro no ídolo
atingiu meu pai
Seu espanto
era tanto
que a mim derrubou
E eu fiquei só
na frente da escola
Menina pensamento:
Mataram John Lennon!
Eu me arrependi
Eu não tinha o direito de ter falado
com tanta ferocidade
da morte do sonho
e do nosso abandono
E esse poema
Não pode sorrir
So sorry so sorry
So terribly sorry
Meu pai tão alegre
dentro de mim
para sempre perdido
em mil papelinhos
A notícia rasgada
Uns óculos caídos
E o olho de Chapman,
o mais famoso
dos assassinos
II
Pai, eu estou agora
na frente da sua neta
que você não conheceu
E é chato dizer
o que aconteceu
O Chapman venceu
Agora é moda
Essa gente que mata
para ficar famosa
para criar um mito
e em nome de um cristo
E na lente de John
há uma face idiota
É a nossa é a nossa
a nossa derrota
III
Então minha filha
E neta do meu pai
Eu queria contar
sobre um homem sumido
que fez canções lindas
Filho de um Império
já combalido
Esse homem falava
de coisas sonsas
como a paz na Terra
Mas você sabe
Falar do óbvio
ofusca as mentes
mais inteligentes
Não o perdoaram
e então o mataram
Mas a coisa mais linda
que Lennon fez
foi ter virado
um “dono de casa”
Ficou cinco anos
sendo feminino
a cuidar do menino
um fruto bonito
do Grande Amor
Que lindo foi isso
(Mas ninguém reparou…)
Menina,
A gente um dia queria ser London
A gente um dia até queria ser Ono
E hoje a gente
Não quer ser mais nada
IV
Então minha filha
Neta do meu pai
Os Chapman ganharam
e não param de gritar
o seu ultimatum:
o nosso fracasso
Talvez seja bobo
tentar resistir
e fazer como Paul
continuar a existir
Então vamos brincar
Vamos fingir
Hoje vamos cantar
a canção do Paul
feita para o filho primeiro
do amigo Lennon
Hey Jude, Hey girl
A vida pesa no ombro
E um dia você
só será escombro
Mas a Música ensina
que a melhor vacina
se chama alegria
E quando você
topar com
o Medo
você irá
volteá-lo volteá-lo
até o Medo
virar
Recomeço
Então vamos brincar
Dentro da mente
Nós hoje seremos
Um superman reluzente
Um super flit fremente
Veja se entende
Vamos mudar as leis
da física do tempo
com nossa mente
E na hora do Lá Lá Lá
a gente vai gritar
Nosso berro será
uma couraça de ar
E a gente vai impedir
a bala de entrar
no corpo no corpo
no sonho no sonho
E na frente do Dakota
ninguém vai tombar
Então, menina,
vamos lá!
A gente vai berrar
dentro da balada
E com a força do berro
vai tudo virar
E forçar a bala
a desviar
do corpo do
de John
e da alma do Pai
que amava os Beatles
(e também os Stones)
Então vamos lá
Hey Jude
!
Hey Jude
!
Papai, sua neta
Menina Solitude
Está presa em Hey Jude
No lá lá lá
Está solta no ar
com os seus quatro amados
que eu aprendi a amar
Ela vai na balada
Vai a bala desviar
Para o Sonho salvar
O Sonho voltar
(e eu não posso,
não posso,
parar de chorar)