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O Livro Impublicável de Gracco

O Livro Impublicável de Gracco

Uma entrevista com Gracco que está lançando pela Selin Trovoar a coletânea com poemas inéditos e já publicados ao longo seis outros livros O Livro Impublicável. Poeta de Diadema, compositor e músico, Gracco sabe a arte do encanto e da conversa franca.

Você é compositor e escritor além de declamar como poucos. A palavra falada e a conversa representam parte importante de sua criação poética? O que lhe inspira e quais as suas referências literárias? 
 

Sem dúvida. Escrevo, na maioria das vezes, como falo e falo, na maioria das vezes, sem técnica. A fala do feirante, do vendedor ambulante, do pastor da igrejinha da quebrada, do pai de santo, do sambista no bar e do bêbado que samba desajeitado, dos adolescentes na praça, do motorista do uber… “O povo é o inventalínguas na malícia da maestria no matreiro Da maravilha no visgo do improviso tenteando a travessia”. A conversa com amigos ou a conversa de desconhecidos no ônibus, na fila do banco, do pão, tudo isso é matéria prima. Cada vez mais busco escrever sem intelectualismo ou requintes estéticos. Busco escrever falar o texto em que qualquer um se reconheça. E tudo me inspira. Uma notícia, um acidente, algo que ouvi ou vi ou que vivi. Geralmente parto do cotidiano. Não me interesso tanto por grandes mistérios e filosofias. Que as sereias cantem as profundezas enquanto o mar me navega. Situações aparentemente banais, muitas vezes, denunciam o absurdo de estar no mundo. Basta estar atento. Apesar disso, não preciso estar inspirado pra escrever ou compor. Escrever me inspira. Quero dizer, às vezes escrevo pra encontrar o entusiasmo que costuma vir com a inspiração. Minhas referências, além dos sempre citados como Drummond, Cabral, Rosa, Hilst, Lispector…, são poetas contemporâneos que não conheço pessoalmente, como Carlos Moreira e Alberto Lins Caldas, e pessoas que tive a sorte de conhecer, de ser amigo. Rani Adriano, Isadora Krieger, Juan Latorre, Beth Brait Alvim, Hudson Santos, Marcelo Torres, Carlos André, Allan Jonnes, Teodoro BalavenDenisson Palumbo, Thiago Peixoto, Natasha Felix, Heyk Pimenta, Pedro Blanco, Maria Giulia Pinheiro, Lucas Bronzatto, Luiza Romão, Bobby Baq, Carolina Guerra, Michele Santos… Muito do que compus é parceria com essas pessoas. A literatura é solitária. A música me permite entrar em contato com outras vozes e descobrir outras formas de fazer. Aí que mora a mágica. 

“...Busco escrever falar o texto em que qualquer um se reconheça. E tudo me inspira. Uma notícia, um acidente, algo que ouvi ou vi ou que vivi. Geralmente parto do cotidiano. (...) Que as sereias cantem as profundezas enquanto o mar me navega. Situações aparentemente banais, muitas vezes, denunciam o absurdo de estar no mundo. Basta estar atento.”

Gracco

Os encontros em torno da literatura, nos saraus e slams, mantêm a juventude engajada e ajudam na circulação das obras e formação de público. Como você participou desta cena em São Paulo e como vê, nestes tempos pandêmicos, a situação do artista popular? 

Não participo tanto. Sempre fiz esse corre mantendo períodos de reclusão, de silêncio. Mas gosto de participar e, mesmo antes de publicar meu primeiro livro, em 2009, eu já tava na rua, nos bares, nos pontos de ônibus, no metrô, com zines, falando poesia pra quem quer que fosse. Depois da publicação minha presença passou a ser mais frequente em saraus. Comecei por Diadema, minha cidade. A cena sempre foi muito intensa por aqui. Principalmente a cena musical. Aos poucos comecei a ir mais longe. SP, Rio, Minas Gerais, Aracajú… Tem muita coisa acontecendo em São Paulo. Tem nem conta de quanto sarau surgiu por aqui nos últimos dez anos… apesar disso, a periferia continua votando nos mesmos fascistas de sempre. Mas isso já é outro assunto. Sei lá. A importância disso, do sarau e do slam, é que cada vez mais pessoas se apropriam da palavra, ousam escrever, ler o que escreveram, dizer. E isso não é pouca coisa. A poesia deixou faz tempo de ser um luxo, coisa pra poucos. O menorzin descobre sua veia pra escrever rimas, a tia começa a falar os versos que escreve há anos. O encontro acontece. O Slam que mais frequento é o Slam do 13, organizado pela galera dos Poetas Ambulantes. A ideia é a mesma. Os Ambulantes invadem os ônibus e trens de SP falando e distribuindo poesia. O Slam acontece no terminal Santo Amaro. As pessoas estão indo ou voltando de algum lugar, e no meio do percurso esbarram com uma galera falando poesia. Morô? É isso. A poesia ali, no teu caminho, fora da estante, da biblioteca, fora da academia, da escrivaninha, do campo de visão dos detentores do saber. Essa pandemia nos fez produzir mais. Escrevi muito na quarentena. Até pra não enlouquecer de vez, pra resistir. A arte, o artista popular sobreviveu a muita coisa na História. A gente se reinventa. Sempre. “Lugar de poesia é na calçada” e talvez a calçada hoje seja virtual. Se faz muita coisa na internet. Menos mal. E quando isso tudo passar a gente ainda estará na calçada, virtual ou não.    

Literatura é artigo de primeira necessidade? Qual a função do poeta na sociedade?  

Essa pergunta me fez pensar em Antônio Cândido e o “Direito à literatura” e T.S. Eliot e “A função social da poesia”, mas o que posso dizer é: sim. A literatura é artigo de primeira necessidade. O livro tem que ser um objeto rotineiro como a camiseta, o sapato, o copo dágua, o pão, a escova de dentes. A função do poeta na sociedade talvez seja impedir a sociedade de desmoronar, afirmar outra possibilidade, outra maneira de ver, sentir, comunicar. 

Fale um pouco dos seus projetos.  

Em breve pela Selin Trovoar sai “O livro impublicável”, uma coletânea com muito do que escrevi. São seis livros num volume único. Textos inéditos e já publicados. Além disso estou retomando as gravações no D Studio, aqui em Diadema. Vamos começar a soltar singles nas plataformas todas. 

A poesia irá derrotar o dragão da maldade.  

Será? 

dstudio apresenta

Repertorio Autoral do Graco. Voz e Violão!

POEMAS DA COLETÂNEA IMPUBLICÁVEL

prece a nossa senhora das barricadas 

                                                               para Lucas Bronzatto 

 olhai por nós 

enquanto acumulamos garrafas 

esperando a queda do preço da gasolina 

enquanto nos afogamos em cerveja 

nos sufocamos com o cheiro podre do resto de cerveja nas garrafas 

pensando em roubar gasolina 

  

pelos que juntam 

e pelos que jantam pedras 

olhai 

  

pelos cavalos que nos pisam 

e também preferem a liberdade 

pelos que não entendem nossa febre 

e desconhecem 

as muitas maneiras de usar pneus e garrafas 

  

olhai 

pelo pai desempregado 

o filho abandonado 

pela mãe que passa fome para alimentar os filhos 

  

olhai por nós e nossos ossos frágeis 

desatai os nós e nos livrai do medo 

e de tudo mais que nos distrai 

  

perdoai o sono dos olhos 

a preguiça dos ouvidos 

o cansaço dos braços 

a pressa dos abraços 

  

abençoai 

os que estão exaustos 

e ainda assim se levantam 

                                                 ************************************************

depois da pedra 

o canto se tornou questão de honra 
 

na inutilidade das asas 

imaginando a nuvem 

ninho 

agonizou sorrindo à gaiola vazia 

 

(HÉRNIA, primeira edição Selo DoBurro, 2013.) 

                                                                       ******************************************* 
 

O PRÓXIMO 

  

Ele tá mal, Vó. Tá pra morrer. Perdoa, Vó, o que faz, ele não sabe. Prepara prele, Vó, um chá daquele que  sabe as ervas as plantas as raízes e as cantigas que  canta enquanto amassa com tuas mãos pretas benditas as folhas e as mandingas, o olho obeso, o peso das catiças, das pragas que rogaram, dos feitiços, Vó. Eu sei que  me escuta. E  sabe que, se salvo, ele não mudar de postura, o próprio orixá cobra, dobra e desdobra o desinfeliz, deixa esse branco azedo mais branco e mais azedo. A gente mesmo nem tem o que cuidar. Ele não presta, sempre achou ofensa que nos servisse, sempre amaldiçoou, caçoou de nós e da nossa fé e da nossa fala e da nossa pele e da nossa raça e da nossa gente, mas, tem piedade, Vó. É coisa dele, dos dele, negar ajuda. Leva pra ele um patuá. Dá nele um banho, uma surra. Defuma aquela casa com jurema, leva arruda kambô rapé de aroeira paricá imburana sananga maria diamba ganja sagrada, Vó. 

Que ele é fraco. E o santo dele mais ainda: um cristo de pedra preso na parede. E ele reza o pai nosso, Vó, mas não se vê como irmão, de ninguém.  

  

(MERAS NOTAS, volume 3 do LIVRO IMPUBLICÁVEL) 

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