O traidor, conto de Lima Barreto
Afonso Henriques de Lima Barreto foi um jornalista e escritor brasileiro. Publicou romances, sátiras, contos, crônicas e uma vasta obra em periódicos, principalmente em revistas populares ilustradas e periódicos anarquistas do início do século XX.
O traidor
Não estava ali há muitas horas. Fora preso de manhã e, pelo cálculo aproximado do tempo, pois estava sem relógio e mesmo se o tivesse não poderia consultá-lo à fraca luz da masmorra, imaginava que podiam ser onze nas horas.
Por que o fora? Ao certo não sabia; o policial que o prendera nada lhe quisera dizer; e, desde que saíra lá da ilha das Enxadas para a das Cobras, não trocara palavra com ninguém; não vira nenhum conhecido no caminho. Nem o próprio Ricardo que lhe podia por um olhar levar sossego às suas dúvidas. Ele atribuía a prisão à carta que escrevera ao presidente, protestava contra a cena que presenciara na véspera. Levara ao conhecimento da alta autoridade a desconfiança que tinha que aquelas execuções não foram autorizadas por ele, as quais denunciava e contra as quais protestava. Nada omitiu do seu pensamento; falou claro, pouco e nitidamente. Devia ser por isso que ele estava ali naquela masmorra, como uma fera, como um criminoso, sepultado na treva, sofrendo a umidade, misturado com os seus dejetos, quase sem carne. Como acabaria?
Não havia base para qualquer hipótese. Era de conduta tão desigual e incerta o governo, que tudo ele poderia esperar: a liberdade ou a morte, mais esta talvez que aquela.
Ia morrer, quem sabe se aquela noite mesmo, e que tinha ele feito de sua vida?
Nada. Levara toda ela atrás da miragem, de estudar a pátria, por amá-la, por querê-la, de contribuir para a sua prosperidade. A sua mocidade gastara nisso, a sua visibilidade também, e agora que estava na velhice, como ela o recuperava? Matando-o. E o que não deixara de gozar e de ver na vida, tudo.
Não brincara, não pandegara, não amara, todo esse lado da existência que parece fugir um pouco à sua tristeza necessária, ele não via, ela não passara, ele não experimentara. Desde dezoito anos que o tal patriotismo lhe absorvera e por ele fizera tolice e estudara inutilidades. Lembrava-se das suas coisas, de tupi, das suas tentativas agrícolas… Restavam delas em sua alma uma satisfação? Nenhuma, nenhuma.
O tupi encontrava a incredulidade geral, o uso, a mofa, o escárnio, o folclore foi aquela decepção, e ambos o levaram à loucura. E a agricultura? Nada. As terras não eram ferozes e ela não era fácil como diziam os livros; as inclemências e irregularidades do clima trouxeram-lhe decepções. E quando o seu patriotismo se fizera combatente, o que achara? Decepções. A sua vida era uma decepção, uma série, um encadeamento de decepções.
A pátria que quisera ter era um mistério; era um fantasma criado por ele no silêncio do seu gabinete. A que existia era do tenente Antônio, do Dr. Campos, essa é que era exata e era real. Mas como é que ele tão sereno, tão lúcido, empregara sua vida, gastara o seu tempo, envelhecera atrás de tal quimera? Como é que não viu nitidamente a realidade, não a pressentiu logo e se deixou enganar por esse falaz ídolo, absorvendo-se nele, dar-lhe em holocausto toda a sua existência?
Ia para a cova, como a irmã, sem deixar traço seu, sem um filho, sem um amor, sem uma asneira, nada que afirmasse a sua passagem na terra, na sociedade. Entretanto, outros que lhe seguissem as pegadas, quem sabe se? Mas como, se não se fizera comunicar, se nada dissera e ficara como maníaco a tracejar para si mesmo e para o seu sonho?
E esse seguimento adiantaria alguma coisa? Essa continuidade traria enfim para a terra alguma felicidade? Há quantos anos vidas mais valiosas que a dele, se ofereciam, se sacrificavam e as coisas ficavam na mesma.
E ele se lembrava que há quase cem anos, ali, no mesmo lugar, talvez naquela mesma prisão, homens generosos e ilustres, estiveram presos por quererem melhorar o estado de coisas de seu tempo. Tinha havido vantagem, as condições gerais tinham melhorado? Aparentemente sim; mas bem examinado, não. Tudo continuava o mesmo e aquele imposto com o qual eles contavam para levantar a população, talvez fosse mínimo à vista dos que atualmente ela paga.
Aqueles homens, acusados de crime tão nefando em face da legislação do tempo, tinham levado dois anos a ser julgados; e ele, que não tinha crime algum, que não havia código da lei que o acusasse de crime, nem era julgado; seria simplesmente executado.
E ele que fora bom, que fora generoso, que fora honesto, que fora virtuoso, ia para casa, sem o acompanhamento de um parente, de um amigo, de um camarada.
Onde estariam eles? Sobre o Ricardo Coração dos Outros, tão singular e tão dedicado, tão inocente na sua mania de violão, ele não poria mais os olhos?
Era tão bom que o pudesse, para poder mandar à sua irmã o último recado: do preto Anastácio um adeus, à sua afilhada um abraço.
Quaresma se enganava, entretanto, quando pensava assim. Ricardo soubera de sua prisão e procurava tomar providências. Teve notícias do motivo exato; era aquele mesmo que ele pensava. A indignação contra a sua carta fora geral no palácio. A vítima tinha feito os vitoriosos inclementes e aquele protesto não teve um defensor. O trovador não perderia tempo: procurou modos de soltá-lo; procurou influências, foi ao general Breves, a Bustamante; mas ninguém quis envolver-se.
Ele não desesperou; lembrou-se da afilhada e a foi procurar na Real Grandeza. A sua esperança não era grande, mas lá foi.
A moça estava só, pois o marido cada vez mais trabalhava para aproveitar os despojos da vitória. Ele lhe narrou o fato e ela não conteve uma exclamação dolorosa.
— Mas que fazer, meu caro senhor Ricardo. Eu não conheço ninguém, eu não tenho amizades poderosas… Minhas amigas… A Alice, a mulher do doutor Brandão, está fora… a Camila, a filha do senador Cariolano, não pode… Não sei…
E a continuar essas últimas palavras com um grande desespero, os dois ficaram calados e a moça enterrou as mãos nos cabelos muitos negros.
— Que hei de fazer, meu Deus? — dizia ela.
Pela primeira vez, ela sentiu que a vida tinha coisas miseráveis e desesperadoras.
Ela tinha todas as disposições, para salvá-lo; faria sacrifício de tudo, mas não lhe aparecia um caminho, um meio.
— Talvez, seu marido — disse Ricardo.
Ela pensou um pouco, demorou-se mais no exame do caráter do seu esposo; mas, em breve, viu bem que o seu egoísmo, a sua ambição não permitiriam passo tão arriscado, e disse:
— Qual, esse…
Ricardo não sabia o que aconselhá-la e olhava para os móveis e que se dá na sala de jantar. Ele imaginava um alvitre, um empenho; mas nada.
Por fim, pareceu atinar em si. Teve uma grande alegria no olhar e falou:
— Se a senhora fosse lá…
Um instante a fisionomia da moça pareceu espantada: os seus olhos se dilataram e o rosto ficou rígido. Esteve assim segundos e logo disse com firmeza:
— Vou.
Ricardo ficou só e Lúcia foi vestir-se.
Ele pensou com admiração naquela moça que por simples amizade se entregava a tal sacrifício; vai bem a seriedade de seu caráter, a profunda amizade que tinha por aquele bom Quaresma a quem, como ele, fosse a única a admirar, a prezar as suas qualidades, a elevação das suas ideias e a sua grande sinceridade.
Não tardou que ela ficasse pronta e ainda abotoava as luvas, na sala de jantar, quando o marido entrou. Ele nem fez menção de ter visto Ricardo e foi logo direto à mulher:
— Vais sair?
Ela, afogueada pela ânsia desesperada, disse com certa vivacidade:
— Vou.
Armando ficou admirado de vê-la falar com aquela vivacidade:
— Onde vais? — e logo, voltando-se para Ricardo,
— Que faz o senhor aqui?
Coração dos Outros não teve ânimo de responder; adiantava uma cena violenta que ele teria querido evitar; mas Lúcia disse com firmeza:
— Vai acompanhar-me ao Itamaraty.
O marido pareceu acalmar-se um pouco quando ela lhe disse a que ia, e foi com doçura que ele disse:
— Mas fazes mal.
— Por quê?
— Vais comprometer-me. Tu sabes…
Ela não lhe respondeu logo e mirou-o um instante com os seus grandes olhos cheios de escárnio. Riu-se um pouco e disse:
— É isto! Eu, por que eu, por que eu, e se eu, para aqui eu para ali… não pensas noutra coisa. A vida é feita para ti, todos só devem viver para ti… Muito engraçado! De forma que eu (agora digo eu também) não tenho direito de me sacrificar, de provar uma amizade, de ter na vida um traço vigoroso? É interessante! Não sou nada, nada, sou alguma coisa, um cafundó qualquer, mas levando para a cova inteiramente intacto o seu orgulho, a doçura, a sua bondade, sua generosidade, sem a mancha de um engenho que diminuísse a injustiça de sua morte.
Ela saiu. Olhou o céu, as aves e as casas de Santa Teresa e se lembrou que por estas paragens já moraram tribos selvagens, das quais um dos chefes se orgulhou de ter domado dez mil inimigos. Tinha quase quatrocentos anos. Tinha havido grandes modificações nesses quatro séculos… Esperemos ainda… E seguia serenamente a encontro de Ricardo Coração dos Outros.