Publicidade

Parábolas de Vinícius de Moraes

Parábolas de Vinícius de Moraes

O poetinha em duas crônicas, publicadas em dois momentos bem distintos de sua trajetória, repletas do lirismo que encantou não só leitores, mas amantes da música brasileira e de seu teatro.

PARÁBOLA DO HOMEM RICO

Rio de Janeiro, Jornal do Brasil, 31/12/1969 

Todos são poetas à sua maneira, mas é bem possível que, se todos o fossem realmente, não houvesse mais lugar para a poesia. Porque a poesia é a amante espiritual dos homens, aquela com quem eles traem a rotina do cotidiano. A poesia restitui-lhes o que a vida prática lhes subtrai: a capacidade de sonhar. O desgaste físico e moral imposto pelo exercício das profissões, em que o ser humano deve despersonalizar-se ao máximo para atingir um índice ideal de eficiência – eis a grande arma da poesia. Depois que o banqueiro passa o dia manipulando o jogo de interesses do seu banco, vem a poesia e, na forma de um beijo de mulher, diz-lhe que o amor é menos convencional que o dinheiro. Ou o bancário, que passa o dia depositando e calculando o dinheiro alheio, ao ver chegar a depositária grã-fina, linda e sofisticada, sonha em tornar-se um dia banqueiro. E fazendo-o, invade o campo da poesia. Pois tudo é fantasia. Cada ação provoca um sonho que lhe é imediatamente contrário. Tal é a dinâmica da vida, e sem ela a poesia não teria vez.

 

Isso me faz lembrar certa noite em Paris, num jantar com meus amigos Marie-Paule e Jean-Georges Rueff, em companhia de um grande comerciante francês, um homem super-rico, dono de um dos maiores supermercados da França, superviajado, superlindo e casado com uma mulher superlinda. Nós nos havíamos conhecido alguns anos antes, em Estrasburgo, onde ele e os Rueff então moravam, e um pilequinho em comum nos havia aproximado, depois de um papo de coração aberto que nos levou até a madrugada. O assunto agora era o mesmo, a poesia, e o nosso prezado homem rico, depois de discutirmos um pouco a extraordinária vida desse jovem gênio que foi o poeta Jean-Arthur Rimbaud, fez-nos ver que não há casamento possível entre o Grande Lírico e o Grande Empresário: ou se é uma coisa, ou se é outra. O verdadeiro homem de empresa ao mesmo tempo inveja e despreza o poeta, uma vez que não se pode preocupar além dos limites com as palavras da poesia. Elas são, para ele, o reverso da medalha: o ouro impalpável. E como as mulheres – dizia-me ele ao lado da sua – são seres devorados de lirismo, sobretudo no amor, o capitalista tinha que pagar seu preço ao artista: e esse preço, via de regra, era a própria mulher.

 

– Elas ficam conosco porque nós representamos poder aquisitivo, podemos dar-lhes as coisas de que necessitam para ficarem mais sedutoras, terem mais disponibilidade para cuidar da própria beleza. Mas essa beleza, elas a entregam a vocês, os artistas. No fundo, as mulheres nos odeiam. O que não impede que vocês sejam todos gigolôs do capitalismo.

 

Ponderei-lhe que já conheci vários homens de empresa que tinham passado na cara mulheres de artistas, mas o nosso prezado homem rico não se deixou perturbar e me disse assim:

 

– É porque não se tratava de artistas verdadeiramente grandes e puros. Seriam, provavelmente, contrafações. As mulheres sentem. As mulheres só abandonam um iate em Saint-Tropez por um apartamentozinho na Rive Gauche à base do amor integral. E esse amor, só o artista verdadeiramente puro pode dar. Nós, os grandes empresários, temos um outro tipo de pureza. O nosso maior amor é o dinheiro e, através do dinheiro, o poder. A mulher vem na onda.

 

– Eu conheci e era amigo – ponderei-lhe – de um grande poeta que foi também um grande homem de negócios.

 

– Grande mesmo? Duvido. Esse tipo de dualidade cria uma profunda infelicidade pessoal. Não se serve ao Deus e ao Diabo ao mesmo tempo.

 

Admirei-lhe, não sem uma certa sensação de desconforto, a franqueza e honestidade – ele, um belo homem, em plena força de seus quarenta anos, ao lado de sua mulher extraordinariamente linda, com um solitário no anular quase tão grande quanto um ovo de codorna, a nos escutar com uma atenção diligente. Fechado o restaurante, resolvemos esticar na boate New Jimmy’s. O nosso prezado homem rico fez uma grande volta para passar diante do seu empório, a fim de ministrar-me uma aula: todo um quarteirão de supermercado, com três pavimentos servidos por escadas rolantes e centenas de vendedores e vendedoras com ordens expressas de serem simpáticos, mas impessoalmente, nunca além do limite, de modo a não retardar com conversas ou excessos de cortesia o fluxo incessante das compras.

 

– Eu tenho uma média de três a cinco pessoas que são presas diariamente pela minha polícia, por furto de objetos. Em geral, depois de pregar-lhes um susto, eu os deixo ir.

 

Depois, na direção do seu Rolls-Royce, cujo chofer dispensara, tirou do bolso do paletó a cigarreira da prata e com gestos precisos acendeu um cigarro e, olhando-me pelo espelhinho da direção, me perguntou com uma voz que não permitia réplica:

 

– Não é uma beleza, poeta?

A ÚLTIMA PARÁBOLA

Rio de Janeiro, 1935  

 

 

No céu um dia eu vi — quando? — era na tarde roxa

As nuvens brancas e ligeiras do levante contarem a história estranha e desconhecida

De um cordeiro de luz que pastava no poente distante num grande espaço aberto.

A visão clara e imóvel fascinava os meus olhos…

Mas eis que um lobo feroz sobe de trás de uma montanha longínqua

E avança sobre o animal sagrado que apavorado se adelgaça em mulher nua

E escraviza o lobo que já agora é um enforcado que balança lentamente ao vento.

A mulher nua baila para um chefe árabe mas este corta-lhe a cabeça com uma espada

E atira-a sobre o colo de Jesus entre os pequeninos.

Eu vejo o olhar de piedade sobre a triste oferenda mas

[nesse momento saem da cabeça chifres que lhe ferem o rosto

E eis que é a cabeça de Satã cujo corpo são os pequeninos

E que ergue um braço apontando a Jesus uma luta de cavalos enfurecidos

Eu sigo o drama e vejo saírem de todos os lados mulheres e homens

Que eram como faunos e sereias e outros que eram como centauros

Se misturarem numa impossível confusão de braços e de pernas

E se unirem depois num grande gigante descomposto e ébrio de garras abertas.

O outro braço de Satã se ergue e sustém a queda de uma criança

Que se despenhou do seio da mãe e que se fragmenta na sua mão alçada

Eu olho apavorado a luxúria de todo o céu cheio de corpos enlaçados

E que vai desaparecer na noite mais próxima

Mas eis que Jesus abre os braços e se agiganta numa cruz que se abaixa lentamente

E que absorve todos os seres imobilizados no frio da noite.

Eu chorei e caminhei para a grande cruz pousada no céu

Mas a escuridão veio e — ai de mim! — a primeira estrela fecundou os meus olhos de poesia terrena!…

sobre o autor

Vinicius de Moraes, carioca da Gávea, nasceu em 1913. Foi poeta, dramaturgo, escritor, compositor e diplomata.  

Em 1943, é aprovado no concurso para Diplomata. Vai para os Estados Unidos, onde assume o posto de vice-cônsul em Los Angeles. 

No período de 1949 a 1951, tem parceria com João Cabral de Melo Neto, que contribui para a publicação do poema Pátria. Passa a conviver com o chileno Pablo Neruda e o pintor Di Cavalcanti. Em 51, “Orfeu da Conceição” é premiada no concurso do IV Centenário do Estado de São Paulo. 

Conhecido por suas parcerias com Tom Jobim e João Gilberto na fundação do movimento da Bossa Nova, teve várias de suas composições performadas por grandes interpretes, eternizadas na memória popular da música brasileira. 

Vinicius voltou definitivamente ao Brasil em 1964, após uma sua segunda vez como embaixador em Paris. Em 1968 foi aposentado compulsoriamente pelo Ato Institucional Número Cinco. 

Publicidade
Publicidade