Poemas de Francis Kurkievicz
I
De frente para o leste, percebo
apenas o silêncio da brisa oceânica
e esta luz que dá sombras ao olhar.
[Ruídos roídos
rumor de humores
gritos de ritos
me despertam, chamam, invocam!]
Mas tenho medo de dar as costas para este mar e este sol.
Tenho medo de volver o corpo
e encarar este horizonte em desalinho.
Nada sei de picos e aclives
de súbitas subidas
trilhas entrincheiradas
entre escarpas e fissuras rochosas.
[A verticalidade da existência me espanta!]
O sol ao meio-dia nos iguala
: humanos, animais, vegetais, minerais
Substância somos da mesma natureza
do mesmo íntimo e único espaço.
[Ruídos e rumores!]
Mas não há mais como ignorar
: os semelhantes se convocam
a confraria se aglutina
buscam o mesmo ar rarefeito.
Giro o olhar ao norte
numa distração dissimulada.
As narinas distinguem os odores da floresta
que se insinuam
na maresia da brisa marinha.
O sol declina.
Põe coroa nos cumes.
E direção no olhar.
[Humores e ritos!]
Giro o corpo num ásana preguiçoso
e me detenho no contrário.
E temendo não ceder mais aos meus temores
miro, de corpo inteiro, a trilha dourada
que o crepúsculo baixa.
E numa intuição serpentina e luciférica
me pergunto espantado
: será este o meu caminho?
XXXVI
Ninguém é o corpo que veste
nem as vestes que vestem o corpo:
vestais ou vendavais ou vespas.
Ninguém é o espaço que ocupa o corpo
nem a culpa
nem a cúpula
que oculta a cópula.
Ninguém é um tal alguém
ou algo do nada além
ou algoz danado, albatroz atroz.
Quem é quem
neste corpo que não nos pertence?
E que, no entanto,
nos detém, retém,
nos mantém reféns iludidos
nesta ilha molecular e ocular
paraíso de crepúsculos opacos
corpúsculos para isso fados
filosofados diante de Vésper.
Ninguém é o corpo que veste.
Investe e despe-te
da angústia de ser.
LXVIII
Curriculum vitae:
Nascido em Paranaguá/PR – virado mais à esquerda –
naquela cidade do “já teve”;
distraído venceu a bronquite em seu próprio território
venceu também o estrabismo e alguns vermes alados;
cumpriu doze anos de escola pudica
saindo sob liberdade provisória;
reincidiu várias vezes no ensino público
cumprindo três anos no médio
dois em Letras/FUNFAFI – desistente convicto –
encetou dois anos de dramas em Artes Cênicas/FAP
queimou dois anos de filmes em Cinema/FAP
tornando-se nas três um dissidente de sorriso amarelo;
diplomou-se em Filosofia/UFPR
por bom comportamento e sofismas;
experimentou onze anos de publicidade
como redator medíocre e ocre;
sete anos de gatos magros em Artes Cínicas;
quatro anos no Magistério dos desencaminhados;
trinta anos de preguiça e ócio e sonhos enfermos;
descobriu na poesia o seu paradeiro
perdendo-se, logo em seguida, de amores pelos contos;
hoje vive da gentileza dos deuses
amigos e anônimos remunerados
de alguns trocados não merecidos
de raros prêmios literários [apenas dois mirrados]
e de livros ainda não vendidos [todos encalhados];
à parte todos os fracassos
é feliz com sua kokeshi – em seu reino de fantasia
e chá verde –
vem buscando sua Vitória night & day
tal como o Espírito Santo
sussurrado em sonho
lhe havia prometido.
LXX
09 atitudes que você deve abandonar
85 filmes imperdíveis
07 coisas que estragam a felicidade
21 livros que você não pode deixar de ler
16 alimentos prejudiciais à saúde
13 crenças malignas
10 hábitos insalubres
04 dicas de beleza
30 perguntas essenciais de autoconhecimento
15 lugares que você precisa conhecer antes de morrer
05 pensamentos tóxicos
12 conselhos de comportamento no exterior
22 coisas que você precisa saber para viver
06 palavras impronunciáveis em alemão
02 números malignos
03 heroínas de guerra da Rússia
08 citações do Buda que vão acalmar a sua mente.
70 poemas que se prestaram a distraí-lo.
Os poemas de B869.1 k96 são frutos da safra de 2018 e foram colhidos ao longo de um ano difícil, cheio de perplexidades e reflexões. O que o leitor encontrará é uma pequena parte de uma produção ainda inédita oculta nos porões ordinários e binários do HD. Pondero e acrescento, inútil qualquer tentativa de explicar o poema ou mesmo de justificar a sua necessidade e urgência, seu lugar no mundo ou no vácuo (tudo o que existe está para ser, não há como fugir dessa premissa). O importante em nossa jornada de criaturas é experimentar, criar e estender os horizontes de qualquer cosmovisão, seja ela inspirada no que for.
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sobre o autor
Natural de Paranaguá, 1965. Reside em Vitória desde 2012. Formado em Filosofia pela UFPR, 2002, com especializações em Yoga pela UNIBEM, 2010 e MBA em Gestão e Produção de RTVC pela UTP, 2010. Foi contemplado com o prêmio de publicação da SECULT/ES, categoria autor estreante, gênero Literatura Infanto-juvenil, com o livro MENINICES. Em 2015 foi um dos 36 finalistas ao Prêmio SESC de Literatura na categoria livro de Contos, ainda em 2015 foi um dos premiados no III Prêmio UFES de Literatura, na categoria Antologia de Poemas com o conjunto INTERNO RETORNO. Os quatro poemas selecionados e apresentados aqui são oriundos do livro B869.1 k96, publicado pela Editora Patuá em dezembro de 2020.