Mês do Orgulho: poeta paulista ousa em procedimentos de escrita, como uso de IA, para discutir questões políticas e eróticas da masculinidade
“Testoste-TRIP”, estreia de Felipe Eduardo Lázaro Braga, é uma das primeiras obras brasileiras a experimentar com poesia gerada por Inteligência Artificial
“Pisar (com o pé direito) no acidentado e por vezes movediço campo da poesia brasileira contemporânea trazendo debaixo do braço elementos como a matemática, a psicanálise, Warhol & Wesley Safadão, Blue Space & Shakespeare, a deliciosa putaria conversada em aplicativos de encontros, diálogos com inteligências artificiais e tantos outros elementos magnificamente desconcertantes é tarefa arriscada. Lemos aqui uma espécie de Joaquim Cardozo atravessado pelo riso e pelas questões queer. Talvez do risco e do riso nasçam, justamente, os pontos altos deste alto livro”
Trecho da orelha de “testoste-TRIP”, assinada por Matheus Guménin Barreto, poeta, editor da Revista Ruído Manifesto e tradutor
A capa de “testoste-TRIP” (150 págs., Kotter Editorial), livro de estreia do poeta paulista Felipe Eduardo Lázaro Braga, chama atenção não apenas pelo tom rosa-choque, mas pela ilustração, que sugere um movimento fálico e, de certa forma, violento. Em um olhar mais atento, percebe-se que a imagem chocante não vem despropositada — na verdade, ela referencia o obsceno gesto do goleiro Emiliano Martinez ao receber o Prêmio Luva de Ouro na Copa do Mundo de 2022, no Qatar.
Para o autor, essa provocação da capa é, na verdade, a chave de leitura da obra. “Essa imagem sintetiza alguns dos pontos do livro e, mais do que tudo, o tom do livro: subjetividade fálica, muita imaturidade, certo homoerotismo (esse sujeito aí atrás tá com uma cara super engraçada), piada, política (o cara fez um gesto profundamente obsceno no Qatar, um dos lugares mais conservadores e homofóbicos do mundo)”, explica Felipe.
O processo de escrita se iniciou durante o período pandêmico, em que Felipe observou um movimento em que a humanidade e o desrespeito pareciam caminhar juntos, seja na dimensão política do país, seja na dimensão afetiva. “As duas coisas se juntaram: estresse ideológico e estresse sexual, isolamento e incerteza. Acho que o livro tem os temas que tem, sexo e política, porque eram as angústias afetivas inerentes ao isolamento, a todos os sentidos de isolamento”, analisa.
Os poemas de “testoste-TRIP”, dessa forma, abordam importantes discussões que tangenciam a sexualidade e a política, principalmente no âmbito da masculinidade, sendo enfaticamente direcionado ao público LGBTQIA+. Estes temas, porém, são trabalhados a partir de uma ampla liberdade de experimentação do autor, que concebe uma tessitura que se destaca por amarrar uma diversidade de referências, que vão de um universo erudito — como Andy Warhol e Álvaro de Campos —a figuras do cenário pop (caso do próprio Emiliano Martinez e do cantor sertanejo Wesley Safadão), perpassando também por eixos pouco convencionais, como a matemática.
Além disso, “testoste-TRIP” também se destaca ao trazer para jogo uma ferramenta amplamente debatida no universo artístico: a Inteligência Artificial. Segundo Felipe, alguns dos poemas têm inspiração ou foram integralmente produzidos por meio de IA, sendo uma das primeiras obras publicadas com o uso do recurso.
O autor, porém, optou por não sinalizar a autoria dos textos. “Se eu selecionar dez, quinze poemas do livro, e pedir para as pessoas tentarem adivinhar quais poemas foram escritos por mim, e quais poemas foram escritos pela IA, as pessoas dificilmente vão acertar”, afirma. “Acho que isso já dá uma dimensão interessante para a leitura, uma meta-dimensão para a leitura, pensar quando não será mais possível distinguir a obra poética de um autor de carne e osso, da poesia, sensibilidade e criação de uma IA”.
Felipe Eduardo Lázaro Braga: a escrita como libido
Felipe Eduardo Lázaro Braga nasceu em Osasco, na Região Metropolitana de São Paulo, em 1989. É filósofo e atualmente cursa pós-graduação no programa de Sociologia da USP (Universidade de São Paulo). Além de poesia, escreve sobre arte urbana, matemática e política, tendo textos publicados em veículos como Justificando, Caos Filosófico, Revista Híbrida, Money Times e Público.
Como escritor, já colaborou com diversas revistas literárias, como a Pixé, a SubVersa e a Desenredos. Possui textos publicados antologias e jornais impressos, como o jornal O Estado de São Paulo.
Apesar disso, Felipe conta que seu processo criativo é pouco definido, sem metas ou prazos diários. “Se eu conseguir escrever uma frase bonita, que realmente faça sentido, o dia tá mais do que maravilhoso. Se eu não conseguir, também não fico muito desesperado não”, expõe.
Para ele, a escrita deve ser sincera e partir de um desejo interno, sem ser movida pela pressão de publicar, por exemplo. E dá dicas para quem deseja seguir na escrita: “Escreva o que cair em cima da sua libido naquele momento, curta o próprio momento de escrever, de pensar, de sacar uma sequência legal de palavras”, aconselha. “Acho que essa é a fronteira entre a honestidade e o texto meio postiço, afetado, artificial, que quer ser publicado, e não escrito.”
Confira o poema “Beijo livre III”, que integra “testoste-TRIP” :
“sei tanta coisa sobre você
entrecortada por dois passos
e uma volta
(geometria de vários pontos
sem nome: etc e eu)
\/\/\/\/\/\/\/\/\/\/\/\/\/ eu \/\/\/\/
para que o próprio andar te desvie
do sol e de ser abrupto,
dois olhares irresistíveis:
ambos meus,
e um para cada glúteo
torneado de andar a esmo
(oxigenada musculatura de voltar bem, é partir sempre)”