Obra premiada pelo ProAC/SP, “Três Línguas”, de Verônica Ramalho, explora angústia por meio de experimentações linguísticas
Poeta paulista utiliza a linguagem (ou língua) e suas possibilidades estruturais para explorar e enfrentar o sentimento de angústia; para isso, brinca com o absurdo e o surreal por meio de jogos de sons, palavras e significados
Segundo o psicanalista Christian Dunker, a angústia é um sinal de que os conflitos vividos não estão sendo metabolizados, ou seja, a pessoa angustiada não consegue dar imagem, forma e símbolo a eles. A escritora paulista Verônica Ramalho acredita que é possível sim realizar isso por meio da arte, especificamente com a literatura.
Em “Três Línguas” (Editora Córrego, 100 p.), seu segundo livro, Verônica utiliza a linguagem (ou língua) e suas possibilidades estruturais para explorar e enfrentar o sentimento de angústia, tão comum diante dos desafios contemporâneos. Para isso, brinca com o absurdo e o surreal por meio de experimentos linguísticos, como jogos de sons, palavras e significados, além de desafios sobre narração e leitura. A autora busca, de forma incansável, abordar e manipular as inúmeras possibilidades da Língua Portuguesa.
“A angústia é um material que tenho à mão e exige que eu a manipule. Seu padrão de manifestação sensorial em alguma medida determinou minhas particularidades de escrita: a pausa, o fluxo, a descontinuidade, de forma que a tratar narrativamente é um modo de aprofundar minha investigação”, evidencia a escritora, que é natural de Santos, no litoral paulista.
A obra é uma das vencedoras do edital ProAC de obras de poesia, promovido pela Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Estado de São Paulo.
Línguas que perpassam Hilda Hilst, Samuel Beckett e Ana Hatherly
“Convido-vos a adentrar esta máquina-metonímia: leia em voz alta, sinta o som nas línguas. O corpo é relação de acesso total subvertendo a precedência do mundo”, escreve a poeta e tradutora Maíra Mendes Galvão, na orelha de “Três Línguas”.
O livro é sobre angústia e o desenvolvimento dos poemas traz os subtemas da relação corpo-mente-ambiente. “De uma certa forma, este livro encerra uma trilogia composta por um curta metragem e meu primeiro livro, ‘A Mulher de Mil Olhos’, de 2018. Nos três, há um percurso angustiante de observação de si e da paisagem que reverbera no corpo das personagens”, revela a escritora.
Influenciada pela prosa de Hilda Hilst, de quem a citação “os sentimentos vastos não têm boca” abre o livro, e por Samuel Beckett, cuja mecânica reverbera nas operações da linguagem, Verônica deve à poesia experimental portuguesa, sobretudo à Ana Hatherly, a liberdade para caminhar à borda da separação entre prosa e poesia.
“Hatherly tem um poema muito especial em que o texto é repetido omitindo palavras. Isso despertou a pesquisa para o que se tornou ‘Antígona’ [título da segunda parte de “Três Línguas”]. O uso da repetição em sua obra também me deu segurança para marcar os ciclos presentes nesse livro”, ressalta Verônica. “Outra grande referência, e essa muito anterior, basilar, foi Marcel Duchamp e algumas premissas Dadá. Em comum, todos esses nomes guardam um pensamento matemático ou estrutura numérica levados ao extremo da abstração como ferramenta criativa”.
A autora também cita como referências Hieronymus Bosch, Haroldo de Campos, Georges Perec, Veronica Stigger, Paul Ricoeur, Roberto Piva, Raul Fiker, além do movimento de poesia experimental portuguesa PO-EX.
Deos, Antígona e Jardim
A obra é dividida em três partes, em que os poemas constroem narrativas distintas, com títulos próprios. A primeira, intitulada “Deos”, apresenta um ser disforme, que está sozinho em um espaço vasto e vazio. A criatura vivencia a angústia pela ausência em meio à vastidão, pois não há destino para onde ir ou permanecer.
A segunda parte, “Antígona”, é uma adaptação livre e atualizada da obra de Sófocles. No entanto, ao invés de uma heroína que enfrenta diretamente leis e tradições, nessa jornada há um corpo que encontra, como companhia e obstáculo, a paisagem urbana. “Em ‘Três Línguas’, Antígona não possui irmão ou missão. Pelo contrário, a sua angústia é uma busca sem alvo e o título da tragédia grega evoca o chamado de responsabilidade. No caso, perante a vida na cidade contemporânea de caos e doença, para finalizar um processo, cumprir um rito”, explica a autora.
Já a divisão final da obra, “Jardim”, retoma a realidade sensorial e “lingo-linguística” traçada na primeira parte. Duas pessoas habitam um jardim absurdo com línguas arbustivas. Há alguns caminhos para sair do jardim, mas todos eles fazem retornar a ele, transformando esse espaço a céu aberto em um local de confinamento.
“Subverter a língua é um desafio, um jeito de superar o risco, de tensionar as estruturas”
Verônica Ramalho enxerga a literatura como uma experiência. “Invisto em uma linha de comunicação que explora os recursos textuais para deslocar a imaginação da história narrada para os efeitos do texto em si. Para mim, a estrutura do texto é a parte mais importante da escrita”, aponta. “Subverter a língua é um desafio, um jeito de superar o risco, de tensionar as estruturas.”
Formada em Imagem e Som pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), Verônica dirigiu curtas-metragens e trabalhou por dez anos como cenógrafa para televisão, teatro e cinema. Atualmente é tradutora, escritora e ministra oficinas de escrita. Além de “Três línguas”, publicou em 2018 a obra de prosa poética “A Mulher de Mil Olhos”, também pela editora Córrego. A escritora atualmente trabalha em um texto que não coube em “Três Línguas”, que está sendo desenvolvido em outro livro, de prosa.