EPITÁFIO PARA O SÉCULO XX – AFFONSO ROMANO DE SANT’ANNA
EPITÁFIO PARA O SÉCULO XX
Aqui jaz um século
onde houve duas ou três guerras
mundiais, e milhares
de outras pequenas,
e igualmente bestiais
Aqui jaz um século
onde se acreditou,
que estar à esquerda
ou à direita,
eram questões centrais
Aqui jaz um século,
que quase se esvaiu
na nuvem atómica.
Salvaram-no o acaso
e os pacifistas,
com sua homeopática
atitude
–nux-vómica.
Aqui jaz um século
que um muro dividiu.
Um século de betão
armado, canceroso,
drogado, empestado,
que enfim sobreviveu
às bactérias que pariu.
Aqui jaz um século
que se abismou
com as estrelas
nas telas,
e que o suicídio
de supernovas
contemplou.
Um século filmado,
que o vento levou.
Aqui jaz um século
semiótico e despótico,
que se pensou dialéctico
e foi patético e aidético.
Um século que decretou
a morte de Deus,
a morte da história,
a morte do homem,
em que se pisou na Lua
e se morreu de fome.
Aqui jaz um século
que opondo classe a classe
quase se desclassificou.
Século cheio de anátemas
e antenas, sibérias e gestapos
e ideologias safenas;
século tecnicolor,
que tudo transplantou
e o branco, do negro,
a custo aproximou.
Aqui jaz um século
que se deitou no divã.
Século narciso e esquizo,
que não pode computar os
seus neologismos.
Século vanguardista,
marxista, guerrilheiro,
terrorista, freudiano,
proustiano, joyciano,
borges-kafkiano.
Século de utopias e hippies
que caberiam num chip.
Aqui jaz um século
que se chamou moderno,
e olhando presunçoso,
o passado e o futuro
julgou-se eterno;
século que de si
fez alarde
e, no entanto
– já vai tarde.
Affonso Romano de Sant’Anna, in “ Epitáfio para o Século XX e Outros Poemas” Coleção: Clássicos de Ouro, Editora: Ediouro
Affonso Romano de Sant'Anna publicou mais de 40 livros. Nos tempos de ditadura militar, quando as expressões artísticas eram fortemente reprimidas pela censura, publicou audaciosas obras nos mais importantes jornais do país. Muitos poemas do autor foram transformados em posters, placas e cartazes e difundidos aos milhares como forma de resistência. O poema “Epitáfio para o Século XX”, publicado em 1997, é uma crítica a algumas atitudes políticas, focado em acontecimentos do século XX.
Affonso Romano de Sant’Anna (Belo Horizonte, Minas Gerais, 1937). Poeta, crítico e professor de literatura e jornalista. Filho de Jorge Firmino de Sant’Anna, capitão da Polícia Militar, e de Maria Romano de Sant’Anna, ambos de orientação protestante. Ainda pequeno, muda-se com a família para a cidade de Juiz de Fora, Minas Gerais, onde inicia seus estudos e se aproxima da literatura ao freqüentar as bibliotecas públicas. Começa a carreira jornalística em 1953, publicando críticas de cinema e teatro no Diário Comercial e na Gazeta Mercantil.
Em 1954, viaja por diversas cidades mineiras pregando o Evangelho em favelas, hospitais e presídios. De volta à capital mineira, conclui em 1962 o bacharelado em letras neolatinas na Universidade Federal de Minas de Minas Gerais (UFMG) e publica seu primeiro livro de ensaios, O Desemprego do Poeta. Organiza, com outros poetas mineiros, a Semana Nacional de Poesia de Vanguarda, em Belo Horizonte, em 1963. No ano seguinte, obtém o grau de doutor pela UFMG, com apresentação de tese sobre o poeta Carlos Drummond de Andrade (1902-1987). Casa-se com a escritora Marina Colasanti (1938), em 1970, e vai residir no Rio de Janeiro.
Ministra cursos na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC/RJ e na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e, como professor convidado, dá aulas de literatura e cultura brasileiras em universidades da França, Alemanha e Estados Unidos. Assume a presidência da Fundação Biblioteca Nacional em 1990. Um ano depois, cria a revista Poesia Sempre, importante veículo de divulgação da poesia nacional no exterior.
É nomeado, em 1995, para o cargo de secretário-geral da Associação das Bibliotecas Nacionais Ibero-Americanas. Colaborador assíduo da imprensa em toda sua carreira jornalística, escreve textos para os jornais O Globo, Folha de S. Paulo, Jornal do Brasil, Jornal da Tarde, Correio Braziliense e O Estado de Minas. Tem poemas traduzidos para o espanhol, inglês, francês, alemão, polonês, chinês e italiano.
Afonso Romano de Sant’Anna é rigoroso no texto, não obstante refinadamente popular. Um poeta do nosso tempo, integrado em problemas e perplexidades atuais.
(Fonte: Enciclopédia Itaú Cultural)