Poemas de Lucas Bronzatto
Lucas Bronzatto é um poeta latinoamericano que, como a maioria de nós, não possui um banco. É dono de versos precisos, preciosos, cuja matéria é o agora, o tempo que se apresenta, sem embrulho, com direito a nó no estômago, arranhando o âmago e revelando o amargo. É o presente de presente e um direto de esquerda.
Aqualtune
(para a Ocupação Independente Aqualtune)
Uma casa dá uma porta
endereço pra conseguir escola
emprego
estrutura pra estudar
cadastro em posto de saúde
Uma casa protege da chuva
de água e de xingamentos
do risco de ser queimado vivo na rua
uma casa diminui os esculachos rotineiros da polícia
Uma casa tem cômodo
pra poder ficar de cama se doente
pra baixar a febre da bebê
pra se recuperar de cirurgia
e do desgaste absurdo do trabalho
Uma casa sem aluguel
tem mesa com comida
gente junta e almoço de domingo
uma casa tem café
tem fica um pouco mais
tem deixa que eu abro
se não você não volta
tem porta pra por a vassoura atrás
pra miséria nunca mais visitar
Uma casa tem fogão
e uma chama que queima a lembrança
das ameaças de quem cobrava o aluguel
dos aumentos abusivos da extorsão
uma casa tem porta-retratos
é passado e é futuro
é memória e História feita a muitas mãos
Quem tem uma casa pode reformar
revolucionar
a própria vida, a cidade, o mundo
uma casa que era um prédio abandonado
não é imóvel:
se movimenta, arrebenta correntes
se espalha pela cidade
uma casa que era um prédio abandonado
é uma trincheira da luta de classes
Uma casa com janela para o centro
tem economia no transporte
mais tempo de sono
tem mais chance de emprego
mais arte mais bibliotecas
mais respiro
Só pode decidir acabar com uma casa
quem não sabe o que é uma casa
porque nunca ficou sem casa
porque tem muitas casas
porque obedece quem tem ainda mais casas
e acha que casa é só um negócio lucrativo
Risadas de crianças poemas e peças de teatro
onde antes só havia eco
espaço vazio
vácuo
e agora ordenam despejo
Aulas oficinas grafites assembleias
onde antes só havia eco
espaço vazio
vácuo
e ainda assim ordenam despejo
É preciso muito vazio pra se fazer uma cidade
O martelo da justiça burguesa destrói casas
ressuscita prédios fantasmas
pra que agentes imobiliários etiquetem o novo preço
HERANÇA
Eis aqui tudo que tenho
meu único bem
minha única herança:
meu corpo
esculpido pelo trabalho
envergado pelo que não pude ser
talhado e retalhado pela submissão forçada
Ossos pouco a pouco entortados
pra se adaptar à posição do corpo
na divisão internacional do trabalho
Ombros cabides de tantas camisas
dessas que dizem que é preciso vestir
pra trabalhar aqui
Artérias afinadas de tanto “dar o sangue”
que eles com seus ventríloquos do RH
desesperadamente tentam pintar
com as cores da empresa
pra disfarçar o vermelho em nossas veias
Debaixo da pele
uma camada extensa de cansaço depositado
De cada músculo retorcido
pendem cláusulas de contratos de trabalho:
Não contestarás;
Aceitarás de bom grado toda e qualquer opressão;
Nós entraremos com as máquinas
vocês sairão com as lesões;
Deixarão idade e levarão insalubridade;
Vida fora das bordas do crachá não há de ter;
Eis aqui tudo que tenho
meu único bem
minha única herança:
um corpo máquina
duas mãos ferramentas
uma cabeça em parafuso
um estômago incinerado
uma coluna repleta de torturas
e sonhos de levantes diante do horror
de nossas tarefas cotidianas de sobrevivência:
arquitetar planos de fuga
pra quando as barragens romperem
pra quando as caldeiras explodirem
pra quando as plataformas cederem
pra quando a água inundar
imaginando quem a gente vai ajudar a escapar
quando a sirene tocar
se é que a sirene vai tocar
se é que vai dar tempo de sair com vida
e se é que é dá pra chamar de vida
o que vive quem consegue sair vivo
Quem sobrevive a um acidente de trabalho
é um sobrevivente de guerra
Num país em que sete pessoas morrem por dia
em acidentes de trabalho
quem sobrevive a um dia de trabalho
é um sobrevivente de guerra
Depois do maior acidente de trabalho do Brasil
córrego do feijão virou um velório permanente
familiares enterraram pedaços de corpos
em caixões lacrados
trabalhadores despedaçados pela lama da Vale
quebra-cabeças da barbárie capitalista
Brumadinho parece um cenário pós-guerra
e não é coincidência
O trabalho é uma guerra
um massacre
Famílias refugiadas das barragens
crianças órfãs
de guerra
O trem que leva a terra do Drummond pra Alemanha
leva pedaços de corpos de trabalhadores
assassinados por seus patrões numa guerra
Estranha guerra em que só um lado perde soldados
mesmo tendo o maior exército
Eis aqui tudo que tenho
meu único bem
minha única herança:
meu corpo
sobrevivente de guerra
jurando vingança
A CORAGEM ESTÁ NA MESA
um fio escapa da bandeira vermelha
tremulando no ponto mais alto da fazenda
cai no chão
é incorporado à terra
assim como as gotas do suor
de quem escalou a imponente estrutura
há tanto tempo abandonada
pra fincar ali o estandarte de luta
facão que extrapola o mapa
as lágrimas de quem chamou de sua
uma terra pela primeira vez
pingam no chão
e são absorvidas pela terra
assim como o cadeado do portão
que separava a fome da comida
estourado a marretadas
e pisoteado pela caravana
que traz de sobra em sua bagagem
o que ali quase não há:
vida
as gotas de saliva que voam junto da frase
“essa propriedade agora é nossa”
dita na assembleia
e as que escapam a cada palavra de ordem
gritada na cara do inimigo
chegam ao chão
e se somam à terra
assim como os minúsculos pedaços de pele
que se soltam dos dedos do violeiro
quando toca canções de luta
acompanhado por um coro de bonés vermelhos
as cinzas da lenha queimada
na cozinha erguida em poucas horas
e fiapos da mandioca do almoço coletivo
são jogados no chão
e vão nutrir a terra
assim como as lascas dos eucaliptos usados
pra sustentar a lona preta dos barracos
que povoam o descampado
já no primeiro dia de ocupação
os papéis em que as crianças desenharão futuros
farpas de foices e enxadas posicionadas no portão
(que agora separa o ódio da resistência)
pêlos que caem de punhos cerrados alçados
muitas gotas de suor de um trabalho sem patrões
tudo tudo vai pra terra
vira adubo
se a pouca comida feita pelo agronegócio
vem banhada em veneno
regada com o suor da escravidão
e adubada com sangue
de camponeses assassinados,
os alimentos produzidos pelo MST
carregam todos esses adubos
feitos de coragem
(Lucas Bronzatto)
– inspirado na luta da ocupação “Marielle Vive”, de Valinhos (SP), do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
Lucas Bronzatto é um rapaz latinoamericano vindo do interior de São Paulo que escreve poemas e nas horas vagas trabalha na área da saúde. Encontra seus versos nas contradições do cotidiano, nas violências, resistências e impaciências diárias, nas dores e nas cores do mundo.
Não anda só, e por isso faz parte de vários coletivos. Faz parte do recém-fundado grupo de teatro “Gertrudes está louca”. É membro do Coletivo Tantas Letras, de São Bernardo do Campo e organiza, com este coletivo, o Sarau Lapada Poética, desde 2013. Compõe também a equipe que organiza o Sarau/Slam do Grito, no bairro Ipiranga, em São Paulo. Junto ao poeta Jeff Vasques, fundou em 2017 o selo Edições Trunca, dedicado à tradução e divulgação de poetas latinoamerican@s de luta, quando publicaram a antologia “Cantos à nossa posição”, do poeta Roque Dalton.