Trazemos cinco poemas de Milena Martins Moura. Poeta, cantora e compositora, publicou os livros Promessa Vazia (2011) e Os Oráculos dos meus Óculos (2014). É também cantora e compositora, autora do EP Flamboyant (2018).
1.
AS CASTANHAS NO fogo
pressão amacia, pressão transforma
a minha boca
minha
busca suculência nos braços
no de dentro das coxas
morde
sou só eu
a minha boca
mordendo mordendo
esse roxo por dentro do braço
é cor de solidão
pisca pisca o olho
no choro
pisca pisca pisca
vem ver se algo mudou
a minha boca
minha
veio contorcer na careta
o choro o choro
e as castanhas chiam chiam
as castanhas pedem silêncio
mesmo sem fado a ouvir
o roxo roxo cor de dente
vai doer tão mais antes de passar
silêncio silêncio
está fazendo frio em dezembro
2.
O VINHO
sangue mítico
beberagem ancestral
um terço
uva
o resto
verdade
eu queria
queria
partilhar esse sangue
morder outro corpo
o meu dói de ontem
tronco
um terço
apoio
o resto
ânsia
corre em dança chula
se balança
dança
pULa
solidão em uva passa
arroz
farofa de banana
a música
i wanna know do you love me baby
e eu que tinha toque a compartir
abraço os pés
embriagada
tentativa e erro
hoje eu vou ser forte
um gole um sorriso
hoje eu vou ser forte
um carinho um carinho
hoje eu vou vencer o vinho
no vino
no veritas
sangue sangue
o cordeiro e os pecados
dividindo o pão
3.
CONTA AS NOTAS
conta os dias
conta os medos na carne
falta muito ainda para o fim da vida
essa incerteza batendo no peito
de dentro pra fora
pôr o pão
pôr o pão
pôr o pão na mesa
disseram que a vida começava agora
mentira
os mais velhos
vingando-se dos novos
as mesmas esperanças
o tempo atrás da cabeça era o único possível
pôr o pão na mesa
paga a luz com que ilumina o verso
vendendo o tempo com que o criaria
ofiúro sádico
paga a água com que molha o corpo
e a comida com que o alimenta
vendendo uma força de cada vez
um tornozelo torcido por dia na pedra de Drummond
conhece a divindade e seus súditos fiéis
conhece os deuses todos do panteão
nem todos merecem pedestal e redoma
pôr o pão
pôr o pão na mesa
não deixa tempo pra nirvana
transcende apenas nos olhos pesados
hoje um lugar no ônibus vagou
4.
O RELES ATO
de atar
os cadarços
o inacabado
e a boca continua aberta em suspenso
eu respiro
o reles ato
de pés e mãos
atarefados
feito o sapato em tropeços
desatado
e eu sou inábil em usar as mãos
servem-me à inutilidade
de não arrematar o rosto
o inacabado
do ano de quem morreu
dos planos de quem surtou
dos meus dentes que eram tortos
e continuaram tortos
dentro apenas do limite do ignorável
o final da chuva em que eu dancei pequena
tomei bronca
mas não gripei
mamãe estava errada
você não é todo mundo
e quem não é todo mundo
é ninguém
e eu ainda tropeço nos pés
e sujo a blusa da escola de sangue
eu respiro
e o calor de madureira lateja as minhas veias de infância
o mundo passando
na telefunken
1984
que já estava ali quando eu nasci
5.
ESCONDO o rosto entre as mãos
feito monstro envergonhado
e molho as mãos com os olhos
pinga das mãos
o sumo dos olhos
machucou-me o não entendido
a falta de esforço
eu não sabia que era possível ser desse jeito
foi tão tarde que descobri não estar sozinha
tarde tarde
tardemais
não adianta mais
meu corpo uma jogada
toalha
cada palavra
falha
fenda pulso rachado
crânio amaciado no golpe
qual de segunda
carne
eu não sabia que era possível
a incógnita
o ritual
acordar escovar dentes me vestir
aceitando
olhar vinte vezes o interruptor
o ritual
agora é tarde
tarde
já sufoquei no meio de uma tarde
ressuscitei para tomar o chá
e voltei à morte para a tranquilidade do senhorio
tarde de sol
na sombra
tão branca que chega a brilhar
a pele
esconda-se ou vão saber que você existe
esconda o rosto entre as mãos
terror
invento uma desculpa e saio pelo canto dos olhos
quem me vê levantar não faz questão de pedir que eu fique
cinquenta quilos
cimento
as costas são fracas para o meu peso
e as águas estão quietas
não há mais ninguém no escuro desse poço
Sobre a autora
MILENA MARTINS MOURA é mestre em literatura brasileira pela Uerj e tradutora. Autora dos livros Promessa Vazia (2011) e Os Oráculos dos meus Óculos (2014). É também cantora e compositora, autora do EP Flamboyant (2018). Publica poemas, fotografias e pinturas no perfil de Instagram @oraculos_dos_oculos