o casal feio se quer chic e escolhe cuidadosamente a roupa cara e chiquérrima que nunca será paga que os cartões sempre pra sempre todo mês e o banco de horas as horas extras o trabalho extra e ordinário ordinária vidinha do casal feio que hoje vão ao chópim o casal e o filho único por enquanto que o casal sonha com uma família imensa ao redor de uma mesa imensa cheia de flores e margarina
e enquanto sonham ela ajeita muito bem os cílios a cintura os seios ele desarruma cuidadosamente a camisa e os cabelos que além de chic esse é um casal que se quer descolado e o filho do casal feio é bonitinho como toda criança feia é um sobrevivente e a voz agudagrave ao mesmo tempo é quase um adolescente e bate o pé e diz que é pré adolescente não criança e odeia ser tratado como criança odeia a camisa xadrez igual do pai por dentro da calça e o cabelo penteado cuidadosamente pela mãe e lá se vão
lá se vai o casal e o filho vai mamãe pensando em perfumes e sapatos e papai pensando em bifes e cervejas e o filhinho pensando em tacar fogo no papai na mamãe nas camisas nos suspensórios nas roupinhas caras e chiquérrimas que nunca serão pagas e no caminho um semáforo e o carro que nunca será pago pára e fora o adesivo do desenho da família que se quer feliz além de chic e descolada e o casal dentro discute
e as vozes ganham volume maior que o da música que toca na rádio que toca o melhor da moderna música e diz eu quero você como eu quero e ele e ela não ouvem a canção sem sal a voz cheia de açúcar da cantora sem sal não ouvem o que ela e ele não falam e deixam de ver a menina moça ali cuspindo fogo jogando tochas e os olhos do filhinho se enchendo de um brilho muito perigoso vendo malabarisado o sorriso o rosto da menina moça iluminada pela dança das chamas no ar
e o carro que agora estacionado e o casal tenta sorrir olhar em volta como distraído como se não o que se calou não houvesse o que se ouviu o que se acha que ouviu e o filho vê que caras altos negros largados de roupas largas cheios de tatuagens falando alto de um jeito estranho andando com o peito pra frente os joelhos inclinados e balançando muito os braços não agradam papai não alegram mamãe e papai e mamãe torcem o nariz ao ver os caras e concordam que aqueles caras não deveriam estar naquele chópim chiquérrimo e comentam qualquer coisa voltando o olhar pra vitrine e evitando olhar nos olhos um do outro e mamãe olha os olhos do vendedor e gosta muito e papai também mas seriam incapazes de dizer isso e isso o filhinho não nota
e isso de papai e mamãe não gostarem dos caras faz o filhinho gostar dos caras quase tanto quanto gostou da menina que cuspia fogo e bem menos do que gostou do outro menino ali lambendo lambuzando a cara no sorvete e o filho do casal feio achou bonito e quis sorvete pediu pra papai que comprasse mas queria mesmo era lamber o rosto lambuzado do menino e pensando em sorvete e no menino e nos pais em chamas
naquela noite
hoje
o filho bonitinho do casal feio vai gozar pela primeira vez