A poesia de Sandra Modesto
Mineira de Ituiutaba, Sandra Modesto é poeta que, como muitos, também pisou nas salas de aula como professor. Graduada em letras e pós- graduada em Educação, professora de português aposentada, Sandra demonstra em seus versos que o conhecimento das técnicas não inibe o lirismo mas potencializa a mensagem e a voz do poeta.
FOTOGRAFIAS
Nem parecia que o tempo passara
Aquela caixa amarelada deu lugar a sentimentos
Formatos de rostos
Corpos grandes e pequenos
Risada soltas e presas
Lágrimas espalhadas em cada ponto
Em todos os cantos, tantos encantos, contos e desencantos.
Elas não, não mentiam. Existiam para lembrar
Por mais que se queira: À beira do abismo, à beira da morte, a sorte, o azar, o varal preso no quintal ou
dentro de casa; Ela sempre estará lá; Na caixa amarelada pelo tempo, pra vida não cair no esquecimento.
Lambe, LAMBE!
Depois de lamber teus pés, de lamber tuas coxas, de lamber teu ventre, de
lamber teu sexo, revirando as fotos, encontrando fatos, lambi o que eu mais queria.
Lambi tua alma.
Era assim que eu imaginava ser lambida, ninguém sabia disso. Eu tinha apenas
treze anos de idade, me via no espelho da cômoda com o toucador, rebocando a
sensação imersa no espaço dividido por tantas meninas.
Minha mãe dizia que eu ficava trancada no quarto e que isso fazia mal. Mal
sabia ela, bem, mal eu sabia. O tempo foi passando e o lambe-lambe era uma diversão
moderna naqueles anos dos fotógrafos engraçados.
A gente se vestia com o melhor estampado e os retratos perdidos em ângulos
longe dos digitais. O pastor da igreja falava muito alto, as orações me assustavam e
minha avó Iracema me puxava ao caminho do senhor, eu só tinha quatro anos, eu só
lambia a chupeta porque eu não mamei no peito e chupei aquele troço enquanto minha
vó vivia. Com pouco mais de quarenta anos, avó Iracema morreu. Eu ainda tinha quatro
anos, o tempo foi lambendo as nossas idas aos cultos, o curto período vivido entre a
primeira neta e a avó com o nome do livro de José de Alencar.
Vó Iracema tinha os traços puxando para os de uma índia, passava e lavava
roupas para ganhar o dinheirinho dela e era para os moços que trabalhavam com
camisas e calças sociais, iguais às dos liberais. Mas uma frase não me saiu nunca da
vida lambida “Nunca deixem minha neta chorar, dos olhos dela não pode sair uma
lágrima sequer”. Mas minha avó morreu e eu chorei muito na vida, escondida ou
estampada em cenas com poucos ou muitos espectadores.
O forrobodó (pão doce) servido de manhã para abastecer a fome rumo à escola
era a maior lambida que eu degustava. Com minha mãe servindo a gente e meu pai
olhando de soslaio.
Não tinha nem muito que pensar, eu nunca tinha visto uma espingarda, um
revólver, só nos filmes de guerra no cinema. Morria de medo daquilo. No fundo, o que
eu mais desejava mesmo, era não cair na mesmice. Como assim? Os anos sessenta,
setenta, oitenta, noventa, foram me ensinando a ser uma “menina” com os olhos
marejados pelas lambidas perdidas.
Eu sei que nem sabia meu lugar. Consegui umas idas e vindas e resistindo ao
século 21, o mais doloroso e ao mesmo tempo divertido, permiti algumas interrogações.
De perguntas em perguntas tive que lambuzar respostas. Por quanto tempo ofuscando,
por quantas noites mal digeridas, por tantos e tantos sorrisos falsos, procurava nas
entrelinhas o eu que já não existia. Está pensando que é fácil suportar do lambe-lambe
aos panos em planos ocultos e difusos?
De repente, resolvi renomear os escritos cuspidos em desafios. Até decidir me
despir de fantasmas da memória, sim, contei outra história.
A cidade amanhecia correndo, as pessoas caminhando com cachorros, o pronto-
socorro lotado, eventos publicados na internet, um bando de gente online. E agora? Dar
a alma ao capeta ou enfrentar tanta merda? Bom, podia não ser tão difícil, uma lambida
por vez. Por vezes tentei chamar a avó, por vezes cansei de ser só, só mais uma
embaraçada. As notícias, os rumores, os horrores, os aflitos, ovos fritos no café da
manhã, preto, puro, amargurado com tanta incompreensão. Coração movido à bateria,
carregador de celular destemendo sua relevância.
O mundo pedia sossego. Eu pedia um nome. Gostava de olhar paisagens. Não
desenhava um rabisco sequer. Mas a vida pedia passagem. Deixa a passagem se chamar
Valentina? Valentina sendo escrita extravasando lambidas na libido, nas estimas,
estigmas, catarse, cartazes espalhados. Incontroláveis desejos invisíveis. Valentina
tornou-se dona de um memorial vivo, vivacidade em não controlar os instintos. Teve
um chefe que trancou a porta da chefia e queria um beijo de língua. Valentina fechou a
boca, correu e abriu a porta, fez o poder entender o devido lugar. Nunca largar macho
foi tão gostoso nesse episódio miserável antes dos anos dois mil. Mas se quisesse contar
sobre isso, poderia. Preferi o silêncio comendo respostas. Na noite fria sugando a língua
pela primeira vez.
No mesmo sol
No mesmo sol da manhã surgia a dor quente.
No mesmo sol que a dor esquentava o dia cortava o meio.
O dia estava indo e a dor nada.
No mesmo céu que cortava o sol ninguém olhava a noite, a dor, o rasgo, o bafo, o trago, o avanço, a lente,
a caricatura, os traços fortes.
No mesmo sol diferente a remitente canção que ninguém ouviu.
Na mesma canção, um menino chorava de fome na rua, uma mulher dizia sobre o “escorregão no chão”.
Um homem bradava – se homem.
Uma história era esquecida.
Beijos nunca mais. Abraços nunca mais.
Silêncio. O sol estava fraco.
No mesmo sol da manhã.
A autora Sandra Modesto apresenta em seu livro ACENDA A LUZ uma escrita contemporânea que perpassando a crônica e a poesia. Não se limitando a ideia dum corpo textual uniforme e com uma temática centrada no trato do universo feminino, desvela todo um cotidiano de possibilidades, que adquire um novo significado pela ótica peculiar de sua percepção criadora dum sensorialismo corrente e incontido.
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Sobre o Autor
Sandra Modesto tem 56 anos de idade e sempre gostou de ler e escrever. É mineira de Ituiutaba, casada com Laércio e mãe de Carla e Gabriel.. Trabalhou como professora de Português e Literatura brasileira, além de repórter de TV e autora de projetos culturais. Atualmente, a autora está aposentada. Ama literatura, ama a vida. Sandra é a filha mais velha de Carlos Modesto dos Santos e Jacinta Evangelista dos Santos (Em memória).
A autora tem quatro irmãs: Sueli, Simone, Silvânia e Suzana.
Gosta de Carlos Drummond de Andrade,Cora Coralina, Clarice Lispector, Cecília Meirelles, do poder feminino na literatura brasileira e mundial. É viciada em Chico Buarque, lê crônicas de Xico Sá de quem é leitora e fã.
Gosta de gente, conversas nas ruas, nos ônibus, no centro da cidade e periferia.
Acredita que nesses lutares, nesses lugares, residem as palavras, a arte, a vida enriquecida na voz popular.
Sandra Modesto sabe fazer pão de queijo, reuniões em cafés da cozinha, conversas fiadas e risadas. Por ser mineira, não perde a piada, o trem, o pão de queijo quentinho e carinhos espalhados.
Dois livros publicados: “Acenda a luz”, Kazuá, 2015. “Tudo em mim é prosa e rima
(Autografia) 2019”.