Uma entrevista com a poeta Wanda Monteiro.
Palavras valiosas sobre nossos tempos. Entrevistamos a advogada e escritora Wanda Monteiro, poeta amazônida cuja escrita revela um olhar arguto, ilustrado e sensível, conquistado em suas andanças e escrevivências. Filha de Benedicto Monteiro, expoente literário e político do Pará, Wanda transita entre Niterói e seu Estado natal militando pela poesia.
Wanda Monteiro, o que pode a poesia?
A poesia aflora no campo da linguagem. Somos seres de linguagem. A linguagem é o atributo que nos faz humanos. Só nos tornamos humanos quando conseguimos cruzar a fronteira do campo da língua enquanto um sistema de comunicação constituído por códigos, símbolos, vernáculos, etecetera), para o campo da linguagem, pois é nesse campo que nos deparamos com as possibilidades não dos significados dos entes e das coisas, mas sim, com as possibilidades de suas significâncias. Só no campo da linguagem nos é possível compreender simbolicamente a existência. Nesse espaço-tempo e no que ainda nos resta de um país vitimado por um projeto de destruição, o que a poesia pode? Digo que ela pode ser o nosso Chão de Exílio.
A linguagem poética talvez seja o último refúgio do humano. A escritura poética restará – mesmo – como tesouro – o relicário dos únicos registros históricos que guardará a remota paisagem dos sentidos e percepções dos seres humanos que, num fractal do tempo, viveram nesse planeta.
Marcelino Freire diz que descobriu Sertânia quando veio para São Paulo. Como funciona sua relação com seu lugar de origem, onde a escritora amazônida revela ou redescobre Alenquer?
Minha relação com Alenquer vem de uma conexão ancestral. Eu não a descobri. Eu sei dela – desde sempre. Durante minha infância e adolescência, vivi assim: Eram dois tempos – duas casas – dois mundos. Na cidade ribeira, Alenquer, a vida era contada pelo tempo das águas. Havia a paisagem das secas e a paisagem das cheias. A vida – toda ela – a rotina de toda gente ribeirinha era regida pelo movimento das águas. Na cheia, o rio subia inundando as ruas e penetrando toda a cidade. Toda gente andava sobre as águas. Nossas ruas eram feitas de rio. Nesse rio de meu lugar, todo movimento era feito sobre marombas (caminhos feitos de madeira leve e flutuante) e por meio de canoas pequenas chamadas de montarias. O rio subia e abraçava a cidade e suas ruas viravam seus braços. Neste chão liquido e verde, eu tive o primeiro contato com as lendas e encantarias da Amazônia pelas histórias contadas por minha avó. Era uma espécie de iniciação – só fui constatar depois, com o intenso convívio com os ribeirinhos. Toda fala, toda narrativa, um simples aceno ou cumprimento vinha vestido de um rico imaginário de seus mitos e lendas. Nessa nesga de chão à margem de um grande rio, porto-areia, porto-margem, porto-efêmero, sempre secando, sempre inundando, eu podia ver a vida seguindo seu curso. Era um tempo líquido. Meu outro mundo era vivido na cidade grande. Uma cidade ainda provinciana e bucólica com cheiro de manga e patchuli. Era minha Belém. Lá havia a casa avarandada de meus pais, eles cultivavam um grande quintal povoado de animais.
Toda fala, toda narrativa, um simples aceno ou cumprimento vinha vestido de um rico imaginário de seus mitos e lendas. Nessa nesga de chão à margem de um grande rio, porto-areia, porto-margem, porto-efêmero, sempre secando, sempre inundando, eu podia ver a vida seguindo seu curso. Era um tempo líquido.
Nesse meu outro mundo, o tempo era dividido e ordenado. Neste mundo da cidade, o tempo tem outro peso – outra medida. Na cidade grande, pensar o tempo é sempre ânsia. Ânsia do que foi e do que será. Ânsia do que é, deixar de ser. Evidentemente que esses dois mundos e esses dois tempos estão contidos em meu imaginário – estão entranhados em mim. Há dentro de mim uma espécie de comunhão desses dois mundos. E quando escrevo, de alguma forma, ainda que nas entrelinhas ou no entreato da escrita, eu resgato o passado na arquitetura de uma memória imagética. E tento escutar a ressonância desses tempos, desses mundos. E nesse exercício, eu trago a memória rediviva de minhas estações. No exato ato da escrita – já não há mais nada no lado de fora do tempo. O tempo é essa corrente: me afoga e me salva. Ora me traz, ora me leva num lugar ou hipótese de lugar. Qualquer ponto onde cabe o tempo da escrita.
Como muitos escritores você não vive exclusivamente da literatura. Os livros e as letras fizeram parte da história de sua família. Conte-nos sobre sua trajetória como escritora, as vocações, hesitações, tristezas e alegrias desse encontro.
Exerci a advocacia durante muitos anos. Fui Procuradora do Estado do Pará para assuntos fundiários, isso me permitiu uma vivência direta com a questão da terra e seus conflitos gravíssimos que ocorriam em meu Estado – essa vivência esta presente em minha obra literária. Atualmente, já não exerço a advocacia e eu me dedico exclusivamente ao meu fazer literário.A literatura sempre fez parte de minha vida. Desde muito menina tive acesso aos livros e aprendi a ter com eles uma íntima relação. Sou filha de escritor, meu pai Benedicto Monteiro foi um romancista e tinha devoção pelos livros, herdei dele essa devoção. Lembro-me de minhas incursões na escrita poética ainda bem menina – uma quase adolescente de 10 anos que gostava de escrever garatujas de poesia, desenhar e fazer versos – esses escritos e desenhos se perderam nas muitas mudanças da família. Ainda tenho hesitações e tristezas – isto faz parte do processo. Mas costumo me ancorar nas alegrias para poder prosseguir nessa lavoura solitária que é o ato da escrita.
Wanda Monteiro, escritora, poeta e cantora, é uma amazônida nascida às margens do Rio Amazonas, na cidade de Alenquer no Estado do Pará. Filha do escritor Benedicto Monteiro, foi circundada pelos livros e cultivou o hábito pela leitura e pelo exercício da escrita desde a infância.
Embora tenha militado por vários anos na advocacia, nunca se afastou de sua vocação, escrevendo ensaios, poemas, contos e romances, publicando seu trabalho em revistas literárias, sites, portais e blogs na rede, como o Portal Literal, Recanto das Letras, o blog www.abaribó.blogspot.com e em seu próprio blog o www.caleidoscopiodpalavras.blogspot.com .
Além de escrever e advogar, exerce a atividade de revisora de textos e produtora editorial na Editora Amazônia, com sede no Estado do Pará.
Nos últimos anos, a poeta e cantora tem se dedicado exclusivamente à arte literária, tendo publicado os livros O BEIJO DA CHUVA e ANVERSO, lançados com o selo da Editora Amazônia, no Estado do Pará e no Estado do Rio de Janeiro.
Wanda Monteiro que também participa do Proyecto Sur Brasil – Poetas do Brasil em suas antologias IX, XI e XIII, lançados no Congresso Brasileiro de Poesia no Rio Grande do Sul, realizou várias apresentações lítero-musicais em movimentos e espaços culturais e se apresentou com números de performances poéticas no Bistrô Barzim– Ipanema- RJ, Conversa Fiada- Niterói, Espaço 29- Niterói, nas edições da Semana de Extensão da UFF- Niterói, Palco da Cantareira,, no Identidade Cultural e no Espaço Convés- Niterói
Fonte: Recanto das letras
A profusão de encontros poéticos, nos saraus e slams, trouxe um novo público, ávido para compartilhar experiências. Como você enxerga a cena contemporânea?
Eu vejo essa cena contemporânea como um fenômeno mais que cultural. Vejo também como fenômeno social. É uma onda – uma mudança de paradigma na literatura ainda em processo. Trata-se de uma necessidade premente de corporificação da palavra poética. Uma espécie de amplificação da palavra pela linguagem corporal e pela oralidade. Há uma profusão de estilos da oralidade que permeia muito dessa produção literária, sobretudo na poesia. Mas como eu disse, trata-se de um processo – vivo – em pulsação, e sobre um processo não há que se instalar uma tese mas, apenas observar e acompanhar sua evolução e afirmação enquanto uma corrente e/ou movimento ou escola literária. Tenho pra mim que esse interesse e avidez por novas possibilidades na produção da poesia, como as performances, os slams, o aprofundamento das técnicas na poesia virtual que agora agrega som e movimento, os saraus, as intervenções poéticas em apresentações musicais, tudo isso é extremamente válido e rico pois advém dos vazios deixados pelo sistema educacional que deixou as duas ultimas gerações órfãs de projetos de incentivo à leitura e nunca agregou aos currículos escolares a disciplina das artes com a devida importância que ela tem.
Também percebo que o advento das novas tecnologias de rede, ao mesmo tempo que reduziram a comunicação num mundo codificado (cada vez mais limitado à uma língua e está aprisionada pela inteligência binária dos softwares e aplicativos), ela favoreceu o intercambio e a interação entre as pessoas, e isso deflagra e ainda deflagrará muitos encontros e movimentos de grande ressonância na cena literária em todo país. Mas eu posso te dizer o que eu sinto: sinto que esse movimento deve continuar a percorrer o país e será absorvido até se instalar como eixo de cultura em algumas regiões.
Quais são suas principais referências artísticas, como você encontra os temas e se há um processo ritualístico na sua escrita?
Minhas referências nas artes são inumeráveis, como fui criada dentro de uma biblioteca, tive acesso, desde cedo, aos grandiosos como eu costumo dizer: Machado de Assis, Clarice Lispector, João Cabral de Melo Neto, Dalcídio Jurandir, Max Martins, Ruy Barata, Drummond de Andrade, Hilda Hilst, Benedicto Monteiro, Benedito Nunes, Guimarães Rosa, só pra citar os mais lidos por mim nesse lado do atlântico. Fora de nossas fronteiras, bebi nas fontes de Fernando Pessoa, Sophia de Mello Breyner, TS Eliot, Maiakovski, Octávio Paz, Roland Barthes, Hermann Hesse; Julio Cortazar, Dostoievski, James Joice, Manuel Puig, Ítalo Calvino e tantos outros e outras. Meu pai costumava me levar a concertos de música clássica, exposições de pinturas e esculturas e peças de teatro, e essas jornadas me abriram muitos horizontes e fui a cada dia mergulhando nesse campo da linguagem artística e tudo isso soma-se até hoje ao meu imaginário e a todo sopro de inspiração que me acomete. Mas, para além das referências e do sopro da inspiração o que me cabe é a cotidiana busca no tudo-sempre-da-vida – esse garimpo nas coisas miúdas, na revelação diária das paisagens – na mágica da natureza em suas diásporas, nos gestos humanos. E sobretudo, me cabe esse mergulho mais profundo no dentro de mim, fazendo a prospecção dos sentidos e percepções mais íntimas e apuradas de minha existência nesse meu escreViver. Minha mente é o avesso do espaço onde a realidade mediata acontece, é meu outro céu, meu outro chão – é lugar absoluto onde me corporizo e corporizo a existência para fora de mim. É na mente – espaço das imagens – que renomeio e reSignifico o mundo. É na mente, esse lugar irremediável que eu, em movimento contínuo, condenso, as utopias e os maravilhamentos para reinventar o tempo, o espaço, as profundidades, nesse todo povoado pelas coisas vivas e redivivas. A mente é um processo e dela, decorre a consciência de toda existência. Não tenho um processo, tenho vários movimentos e são sempre diversos e para cada um deles elaboro um ritual: preparo o lugar com coisas que simbolizam algo para o quê estou sentido ou vibrando: cristais, imagens,flores, folhas, incensos, livros e depois, visto tudo isso com silêncio e solidão.
É assim que costumo conceber: em silêncio e solidão. Às vezes, acordo no meio da madrugada, com essas vozes inquietantes, me rendo e escrevo na cama mesmo. Sempre, escrevo os meus manuscritos com a caneta em cadernos sem pauta, depois levo isso pra um notebook para vivar arquivo digital. Mas a minha escrita mesmo é revelada na minha caligrafia, muitas vezes difícil de ser compreendida senão por mim mesma. Sou uma pessoa da noite.
Escrevo na madrugada. Quando a casa dorme, eu escrevo.
Diante de um cenário de desinformação e fundamentalismos, a caça aos artistas, pensadores e cientistas é a repetição farsesca, mas não menos trágica, de um período terrível da história do país. O que você tem a dizer sobre os dias atuais e a ausência de memória sobre as atrocidades da ditadura.
O que está acontecendo com o país tem me afetado física e organicamente. Eu vivi e sofri os horrores da ditadura militar. Meu pai era deputado estadual pelo Pará, defendia a reforma agrária no país e por lutar em defesa dos direitos de igualdade e justiça social, foi cassado, capturado como se fosse um animal e exposto em praça pública, preso, isolado, torturado e perseguido por longos anos. Minha família sofreu toda sorte de perseguição, execração, constrangimento, isolamento social. Minha mãe e seus cinco filhos pequenos (eu, com apenas 7 anos de idade) foram mantidos em cárcere privado no porão de nossa casa, por longas horas, pra que ela delatasse o paradeiro de meu pai. Nossa casa foi invadida e saqueada por dezenas de vezes. A biblioteca de meu pai, com mais de 5000 livros foi incendiada numa enorme fogueira para servir de exemplo aos vizinhos. Sofríamos, cotidianamente uma tortura psicológica, nas ruas, nos lugares públicos e até mesmo dentro de casa quando anunciavam nas rádios e jornais, rotineiramente, a morte de meu pai para que minha mãe fizesse um movimento que o pudesse comprometer ainda mais. Fomos obrigados a mudar de escola porque não suportamos as humilhações. Vivemos longos e dolorosos anos exilados dentro de nossa casa. Nossa casa era uma ilha dentro da ilha. Então, não é fácil para mim ter essa memória aflorada e conviver com todos esses fantasmas. Mas para mim, o mais trágico, é que em 1964, o poder foi tomado de assalto sob o jugo da força e da opressão. Neste momento de nossa história que ainda se move sob o nosso testemunho, a democracia – o poder do povo, pelo povo e para o povo – foi entregue por milhares de brasileiros pelo voto. Isso é trágico. Milhares de brasileiros reconheceram e deram a autoridade para um governante que representa o pior dos atrasos em escala internacional, e o que é pior: Ele representa e defende interesses de uma obscuridade tamanha de grupos que só tem um interesse: vender e leiloar os recursos patrimoniais do país no varejo internacional. Elegeram um presidente que nem sequer tinha um projeto de governo, não devemos nos enganar, esse cenário de desinformação e distopia é proposital. É forjado e minuciosamente planejado com o propósito de promover a mais profunda alienação baseada em mecanismos sutis de manipulação mental de milhares de brasileiros que se encontram nesse conglomerado das redes sociais. Não será fácil combater esse inimigo feroz e invisível que transita num espaço virtual capturando algorítimos para enredar a todos e todas numa trama inimaginável de verdades engendradas (essa coisa chamada de fake news) de acordo com os interesses do eixo de poder.
Escritores, escritoras, poetas, artistas de todas as artes, pensadores, professores comprometidos com a educação, nesse momento da história, representam o que há de mais perigoso para esse regime autocrático travestido de democracia que está sendo implantado no país.
De verdade, não vivemos mais num Estado Democrático de Direito visto que as instituições vigentes estão comprometidas com um projeto de destruição do país. Nossa soberania e autonomia estão em risco, uma vez que não há nação que resista à morte de sua história e de sua cultura. E o que testemunhamos, cotidianamente, são as tristezas do sucateamento das universidades, a quase extinção de políticas de fomento à ciência e à produção de conhecimento e o fechamento de nossos teatros, museus e espaços culturais.
É preciso prosseguir ao lado dos indígenas, de toda gente negra, dos pobres, dos LGBT’s, dos degenerados, dos desajustados, dos sem terra, dos sem teto, dos sem empregos, dos sem armas, das mulheres e dos homens libertários e libertadores que amam esse país.
Mas, se somos o perigo maior, somos também a esperança. E precisamos, ainda que nas sombras das ameaças, seguir e prosseguir. Sou mãe de 3 filhos, Marcelo, André e Aline, eu me preocupo com o futuro deles e milhares de jovens brasileiros. Há um projeto de extermínio dos indígenas, de toda gente negra e pobre. Há um projeto de destruição de nossas reservas minerais, de nossos mananciais de água doce e de nossa mata. Como combater um projeto de destruição de dimensão incomensurável como esse? Infelizmente, o planeta sofre a ação predatória do humano que em vez de preservá-lo para as gerações futuras, promove sua destruição numa espécie de autofagia. O futuro só é possível quando o humano tiver consciência de que não está nem acima nem abaixo da natureza, mas sim que é parte dela – física e orgânica. É tudo muito preocupante. Mas meu alento é que posso sentir nos meus filhos – dentro deles – uma fonte de esperança – de que tudo vai passar e de que possamos continuar lutando por um mundo mais humano e possível.
A poesia irá derrotar o dragão da maldade?
Acredito que a poesia possa enfurecer, ainda mais, o dragão da maldade. Eu pretendo continuar fazendo poesia. Todas as noites, tento salvar da morte os versos que agonizam em minha pena. Tento provocar nas palavras sua ressonância telúrica, murmurando luz na terra fria de corações. Na geografia da escrita, há que ousar agasalhar – num outro tempo – a vida, na premência de inventar outro mundo.