Entrevista exclusiva com Claudia Gomes

Conversamos com a roteirista, contadora de histórias e também poeta Claudia Gomes. Um bate papo sobre os caminhos da escrita profissional e a contemporaneidade.

Claudia Gomes da Cunha é uma mulher periférica. Neta de lavradores; filha de pai pedreiro e mãe do lar; cria de Araçás em Vila Velha/ES; e formada em escola filantrópica, na porta da qual seus pais passaram madrugadas acampados para conseguir matrícula. Contadora de histórias e roteirista, formada em Roteiro Cinematográfico pela ECDR (Escola de Cinema Darcy Ribeiro), também trabalha em outras áreas da escrita que envolvam criação e storytelling. É autora dos livros “Mariazinha em verso & prosa”, “Sarau da Mariazinha”, “Cordel da Mariazinha” e “Hecatombe Hipotética”. Duas das séries que co-roteirizou foram ao ar em 2019: “Lincoln, o Mago do Pop” (Music Box) e “Pela Fechadura” (Prime Box). Seu roteiro “Curae”, co-roteirizado com Bruna Horta, foi selecionado no FIM 20. É integrante do Coletivo “O Concílio” de roteiros e narrativas de protagonismo feminino que ganhou o “Hors Concours” do Cabíria e o “Novos Roteiros” em 2020, sendo ainda finalistas do Rota. 

Poucas pessoas entendem como funciona a dinâmica da produção de conteúdo no mundo conectado e multimídia, onde conquistar a atenção é fundamental. Você atua como roteirista, onde a escrita e a criação estão sempre presentes. Nesta sua trajetória quais os maiores desafios e dificuldades para encontrar formatos, trabalho e fornecer algo com circulação entre o público? Dá pra viver sendo escritor só de “livros”?  

Hoje realmente tudo é multiplataforma, multimídia, multipotencialomnichannel. O segredo de entender como o mundo de hoje funciona é não entendê-lo: é partir do princípio de que não se sabe de fato e, por isso, se deve reaprender sempre. O audiovisual faz parte dessa rede em transformação e é necessário se reinventar para acompanhar o fluxo de mudanças. Os livros também. Há esse boato de que o mercado do livro está em decadência, mas não procede. A internet fez todo mundo ler. Existem textos por todos os lados. O que a gente tem é um mercado em transição, como houve com a música (e ainda está havendo). Esse novo escritor e esse novo leitor necessitam de uma conexão maior entre si e ela se dá através das redes sociais. O novo escritor precisa saber um pouco de marketing, marca pessoal, de conteúdo estratégico, de comunidade. Até ele ter uma visibilidade na rede e leitores ativos ele precisa testar estratégias e depois continuar seguindo nesse movimento. Numa realidade não-pandêmica podemos incluir nessa formação de comunidade de leitores, a presença e participação do escritor em saraus e eventos literários.  

São muitos os desafios. Eu, como mulher periférica, que enfrenta tantas resistências, e como mulher criativa, que ama inovação, prefiro viver de escrita. Isso significa que eu vivo de mais de um canal do escrever. Vendo livros, dou oficinas, escrevo séries, filmes e tenho me movimentado em direção a outras possibilidades mais tecnológicas que são parte do futuro: games, aplicativos, interatividade.  

Sendo mais objetiva nas respostas:   

As maiores dificuldades são o governo atual e seu desmonte da cultura brasileira, o elitismo de alguns caminhos da cultura no país, porque o resto a gente escava. Artista é uma profissão de necessidade, paixão, o artista precisa se colocar pra fora para não sufocar. Os suportes com os quais o artista trabalha fazem parte dele como uma vara de condão para uma fada: são extensões de quem se é e, sem suas ferramentas, perdem poder.  

Dá para viver sendo escritor de livro? Não é o meu caso, mas dá. Não é fácil, é vida de empreendedor raiz, muita caminhada, estudo, teste, determinação, crowndfunding, edital, blogueirice, evento… haja desconstrução!  Mas dá.   

"Eu digo que conto histórias de muitas maneiras, inclusive com o corpo. O slam do corpo está aí para dizer que não só é possível, mas para levar isso a um outro nível potente de linguagem!"

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Você é uma contadora de histórias. Há alguma formulação anterior, alguma técnica que você usa? Quais os seus contadores de histórias preferidos e qual o papel da dramaturgia e teatro nisto tudo?  

Eu sou um caso curioso. Há muitos anos atrás eu sofri uma depressão profunda com tentativa de suicídio, catalizado por um assédio moral no trabalho. É algo realmente aterrador, mas sobrevivi e, para me proteger, desenvolvi uma mente seletiva. Eu sei, mas nem sempre lembro de origens. Eu.  Absorvo, crio minha próprias conexões e verdades, recrio, inovo. As coisas funcionam em um nível inconsciente e intuitivo para mim.   

Para além do meu trauma, em 2018 Paul Frankland e Blake Richards da Universidade de Toronto publicou um artigo onde ele fala sobre a otimização do cérebro e como ela auxilia na tomada de decisões. Faz parte do processo de um cérebro eficiente esquecer tudo o que for detalhe, uma vez que é difícil tomar decisões em um mar de informações inúteis. Isso normatiza o “dar um branco” ou esquecer um objeto, por exemplo. É claro que o cérebro é uma terra complexa em exploração, mas isso fala um pouco sobre o meu processo criativo. Afinal storytelling também é neurociência!  

Por isso, eu aprendo as técnicas, mas raramente as aplico como estão nos livros e nos estudos. Normalmente é um mix delas já processado e desenvolvido, que meu cérebro me dá como soluções para esse ou aquele desafio. E claro, o maior desafio de todos é a sala do roteirista, trabalhar em equipe é sempre um processo evolutivo e desafiador, nesse caso, dependendo do projeto, somos convidados a utilizar esta ou aquela técnica. É comum sempre o uso dos três atos aristotélicos e da jornada do herói, apesar de eu me identificar mais com a jornada da heroína, obviamente.  

Sempre gostei muito de Neil Gaiman, por me fazer viajar com suas aventuras mitológicas e fantásticas. Gosto também de Margaret Atwood pela provocação certeira e de Phoebe Mary Waller-Bridge pela genialidade. Mas tem muita gente, eu gosto de coisas que me provoquem e muitas vezes é um texto e, não, o conjunto da obra.  

A dramaturgia e o teatro me deram base para criar personagens, para além da atuação, no papel e para contar histórias de maneira mais leve. Eu digo que conto histórias de muitas maneiras, inclusive com o corpo. O slam do corpo está aí para dizer que não só é possível, mas para levar isso a um outro nível potente de linguagem!   

Como e quando surgiu o seu contato com a poesia? Que papel ela tem na sua vida?  

Minha infância não foi fácil. Eu era a que tinha mais roupas no guarda-roupas: eram cinco gloriosas mudas de roupas. Além das dificuldades financeiras, vinham as questões da falta de conhecimento dos meus pais, pela baixa escolaridade, e a sobrecarga social opressiva da religião e do machismo.   

Eu aprendi a contar histórias muito pequena, com meu bisavô lá no Assentamento Pip-Nuk no norte do Espírito Santo, nas raras e incríveis visitas. Mais tarde, aprendi a ler e descobri as histórias do vô nos livros dos irmãos Grimm. Me apaixonei pelo ato de ler e comecei a escrever também. Ansiosa, os contos e crônicas eram muito longos para as urgências dos meus desabafos infantis solitários e Castro Alves realmente não tinha a linguagem mais atrativa. Até que descobri “Aos poucos fico louco” de Ulisses Tavares na biblioteca da escola. Ah pronto. Literatura marginal infantil era o que eu precisava para a minha narrativa terapêutica de sobrevivência. Eu acho que todo mundo gosta de poesia e só não encontrou a linguagem certa.  Algumas poesias daquela época, as que sobraram, publiquei no livro “Sarau da Mariazinha”.  

Mais que terapia, hoje a poesia tem para mim a função de comunicar sentimentos, pensamentos, me conectar às egrégoras políticas de mudança e evolução.  

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"A história é cíclica, então não sei se a poesia vai derrotar o dragão da maldade. Mas que ela vai resistir à todas as investidas dele, ela vai. Poesia é bicho forte, o que tem de beleza, tem de estratégia. Poesia espera nas frestas, entre os paralelepípedos das ruas, nos buracos das pedras, numa lufada de ar. Poesia é pior que covid, porque não tem estudo que seja capaz de trazer vacina."

Cosmo Paralelo, Hecatombe Hipotética circulam no formato e-book. Fale um pouco destes livros separados por cinco anos (2014 e 2019) e da sua experiência com o formato.  

 “Cosmo Paralelo” foi uma experiência que ainda está em andamento. Preciso de mais feedbacks para a Parte II do livro. O formato da narrativa parte da visão da personagem, uma alterego minha. Essa personagem se encontra confusa no início do processo, de modo que o leitor desvenda o universo ao mesmo tempo que ela. Há também algumas fragmentações de experiências e algumas camadas metafóricas. Estou estudando essas possibilidades, até onde elas são interessantes e em que ponto ficam difusas.  

“Hecatombe Hipotética” foi comercializado em sua versão física, mas criei a versão digital como forma de fechar o ciclo e democratizar o livro. Ele fala sobre mim, do mesmo modo que todo o meu trabalho, é como disse Frida Kahlo, “o assunto que eu conheço melhor”.  

E-book é o futuro. Tenho estudado marketing digital e desenvolvido meus caminhos. Demora um pouco porque o trabalho digital é missão de formiguinha: lento, árduo, constante e a sobrevivência demanda muito tempo. Os trabalhos paralelos prioritários para a sobrevivência tiram o tempo desse desenvolvimento que requer testes e estudos. Mas seguimos que escrever é resistência.   

A poesia irá derrotar o dragão da maldade? 

Pergunta capciosa. Lembrei daquele quadrinho do Rafael Correia que virou meme: “e agora, o que faremos?” – “poesia, esses canalhas não suportam poesia”. E lembrei também do filme do Glauber Rocha, “Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro”, fui até reassistir.   

A história é cíclica, então não sei se a poesia vai derrotar o dragão da maldade. Mas que ela vai resistir à todas as investidas dele, ela vai.   

Poesia é bicho forte, o que tem de beleza, tem de estratégia. Poesia espera nas frestas, entre os paralelepípedos das ruas, nos buracos das pedras, numa lufada de ar. Poesia é pior que covid, porque não tem estudo que seja capaz de trazer vacina. A boa notícia é que poesia não mata ninguém, ao contrário, dá vida, sobrevida e voz.   

Poesia quando você menos espera… Pá! Ela te pega. 😉  

Sigamos, livros e canetas em punho!  

LIMPEZA  

Por Claudia Gomes da Cunha  

  

Era dia primeiro, ano novo,  

Eu tinha sete anos e lavei a louça.  

Purifiquei cada prato e panela,  

Água e sabão,  

Talvez desejando um bom ano  

Talvez um alívio momentâneo da vontade de ser normal  

Talvez um lapso, um esquecimento da rotina  

Talvez uma greve do meu protesto infantil  

  

Minha mãe viu tudo   

as louças limpas e emborcadas   

na pobre e esmerada cozinha  

e chorou.  

  

– Achei que não soubesse limpar,  

que estivesse falhando como mãe,  

mas está tão limpo.  

Por que não me ajuda?  

Meninas ajudam a mãe.  

  

Respondi o de sempre:  

Ajudaria com afinco e dedicação  

assim que meu pai e meu irmão   

também se juntassem aos cuidados da casa.  

Não fosse assim  

que eu podia levar as varadas que fossem  

ficaria sentada  

e se eu fosse ela,   

sentava também.  

  

A decepção no olhar dela   

doía tanto quanto   

a dor de vê-la abusada   

por aquele projeto de homem   

bruto no sofá:  

– Me dá um copo de água.  

Esse café está ruim.  

O almoço está atrasado.  

  

Minha mãe tão querida.  

Minha mãe magra corria  

das cinco até às onze  

varrer a varanda  

bater a roupa no tanque  

passar pano na casa  

plantar no quintal “a mistura”  

para o arroz com feijão que meu pai trazia  

plantar ervas  

cuidar dos filhos  

padaria escola supermercado posto de saúde igreja   

o calor, os sorrisos, as lágrimas fugídias, as orações,  

os anjos que ela via pelos cantos da casa,  

as dificuldades imprevistas – e dava-se um jeito.  

  

Eu, me ocupava de driblar o tempo,  

à espera do crescer.  

Recortava escassos livros didáticos,   

arrastava as figuras pelo chão,   

inventava novos mundos,   

novas possibilidades,   

  

mundos onde mamãe era feliz   

e lavávamos a louça, as roupas   

em algum córrego imaginário  

todos juntos, era mais rápido   

e nos divertíamos,   

jogando água uns nos outros,   

agradecidos por termos tido mais uma refeição.