Crônica de Michele Alves
Estudante de literatura e escritora, Michele Alves adota também a identidade de garota nicotina, digital desinfluencer, onde trabalha com colagens manuais e digitais. Publicamos aqui uma de suas crônicas.
“aos olhos de menina, tudo é invariavelmente efêmero”
Ao que tudo indica, meus olhos de menina se perderam lá no começo da adolescência. Junto com as roupas encardidas de tanto me sujar na rua.
Olhos de menina que digo é essa inocência que o mundo simplesmente não nos permite ter. A nós, mulheres, quer dizer. Uma inocência… Eu quero dizer, uma ausência da noção de que tudo pode acontecer comigo. A noção de vulnerabilidade; e vulnerabilidade é uma palavra grande demais que a gente só aprende quando precisa de fato. Olhos de menina que se esvaem com o tempo, feito letras impressas em um cartão postal, onde a tinta padece ao passar dos anos, onde a inocência padece, junto a pressão dos dias. Eu quero dizer, olhos de menina!
Roupas encardidas no varal, cujas estampas são aqueles desenhos que a gente assistia de manhã, sujas das brincadeiras lá fora são esquecidas no quintal. O mundo nos apresenta com um novo padrão comportamental, padrão quase impossível de seguir, mas tentamos porque a tal vulnerabilidade segue em nosso encalço como um carrasco prestes a levantar a alavanca da guilhotina. Os olhos de menina seguem assassinados pelo carrasco e aparecem nos jornais. Algumas vezes tão sutil, que a gente se surpreende quando nota isso numa conversa com as amigas da faculdade, em uma roda enquanto partilha um beck. Às vezes, a gente nota cedo. Aí quer dizer que a vulnerabilidade já nos alcançou. Algumas vezes até aparecemos nos jornais, onde a perda desse olhar estampa a capa principal. Não dura muito, nunca dura muito. A dor é particularmente nossa, apenas nossa.
Tão nossa quanto nossas roupas de brincar na rua. Tão nossa quanto a pele que veste-nos como um manto sagrado. Sagrado-profano? Melhor assim, soa mais correto. A dor é ainda nossa, não dá pra passar pra frente. Tem algo meio encardido em nosso emocional, das sujeiras do mundo lá fora. Até soa poético, mas é deveras triste. Olhos de menina que se foram talvez na adolescência, quando a gente aprende a palavra consentimento, consentimento porque aprende o que é assédio.
As roupas da infância todas encardidas no varal. A bermuda rasgada, camiseta larga e o tênis sujo, o chinelo estourado. Quarando no tempo, levando embora bons momentos arrancados de nós. Arrancados, a gente não cresce feito os outros. Os outros, sabe? Eles.
Quarando no varal, as roupas que nunca mais irei usar. Eu me olhando na infância, pensando na dor depositada ao longo dos anos. Vulnerabilidade e outras palavras muito feias, adicionadas no vocabulário de forma empírica. A gente vive mil vidas em uma só, a gente vive meia infância quando deveria ter uma inteira. Nos olhos de menina… a matemática nunca bate.
A nossa dor é a única coisa que possuímos, quando nem o corpo é da gente mais. A gente cultiva essa dor, e a nutre, em algum canteiro do cérebro, se esforçando o máximo para não florir em ódio. Depois a gente aprende que um pouco de ódio é necessário, depois que as roupas estão no varal, qualquer inocência pode atrapalhar.
É por isso que usamos nossas chaves de soco inglês tarde da noite, entende?
É por isso que na bolsa tem um spray de pimenta. É por isso que não confiamos nem nos homens de nossa família. Alguma dor cultivada aqui dentro, plantada como erva daninha, no lugar de uma flor nativa da infância.
A infância encardida quarando no varal. Os olhos perdem-se no cotidiano, a tal da inocência. Talvez tenha sido espantada, quando um homem buzina para você, aos onze anos de idade. Quero dizer… toda mulher tem algum trauma desses dentro de si.
Olhos de menina… Jamais poderiam lidar com isso. A gente encascora o espírito, que é para não chorar muito ao abrir os jornais, ao ver as notícias. Eu quero dizer… É dor demais. Parece que é a única coisa que é nossa por direito. O resto a gente tem que tomar.
O que eu quero dizer mesmo? Foram-nos arrancados esses olhos de menina, talvez por isso, esse sentimento de luta entre em seu lugar.
Michele Alves tem 25 anos e mora na periferia de São Paulo. Estuda Letras na Universidade Federal de São Paulo e já lançou dois zines independentes, A Fuga, um zine contendo um conto de suspense e Silêncios, um zine de crônicas e colagens. A escrita sempre foi uma parte importante e recorrente de sua vida, porém, até os 22 anos, Michele estudava Geografia, até que decidiu largar para se dedicar a literatura e a escrita como profissão. A autora aborda temas como transtornos mentais, política, feminismo, romance... Seus contos em sua maioria são de terror ou suspense. Em 2018, a autora começou também a fazer colagens manuais e digitais como forma de ilustrar suas crônicas e poemas, os quais publica em sua conta no instagram sob o codinome Garota Nicotina, nome que também é dado para seu tumblr e médium onde ela também publica alguns de seus textos. Atualmente a autora está escrevendo seu primeiro romance.
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