ARRE, um conto de Adriano Espíndola Santos
ARRE
Com a faca a meio centímetro da pele, entre o esterno e o estômago, com os punhos rijos de estremecer a musculatura, prestes a executar(–me) o haraquiri, escutei uma batida vacilante na porta. Merda! Minha cabeça virou. Imaginei ser um sinal para refletir. Para quem é ateu, não faz o menor sentido. Porra nenhuma. Sou homem, não posso titubear, voltar atrás: já é.
Fina. Escutei ao longe, vaga, a voz da Danúbia. Danúbia?! No primeiro instante não atinei, mas, logo em seguida, parei, joguei tudo no chão; desabei. Calado. Solucei pouco, contido, para ela não escutar. Os chamados ficaram intensos, vigorosos, como as batidas na porta da sala, a mesmíssima porta pela qual ela resolveu sair.
Caralho, que escrota! Como conseguiu subir? Já tinha advertido e desautorizado a decrépita María González, a vizinha carente, bondosa, fervorosa, abandonada: nojenta. Prometi dar-lhe uma surra se se metesse nessa história; surra de cinta de couro grosso – se em sua terra tomou, sabia bem do que estava falando. Ananias, o síndico bonachão, bon-vivant – mais um canalha enrustido –, também estava terminantemente proibido. Prometi enfiar-lhe a mão na cara, de deixar o nariz rente àquela bochecha murcha – merece há tempos, venho adiando por questões pessoais.
Insistia, a condenada. Não basta o que fez? A solidariedade dela tem hora e lugar, a tática é antiga. Parece uma cadelinha, com o rabo entre as pernas, quando quer alguma coisa; na maioria das vezes, é rola. No dia em que saiu, sem ver nem pra quê, depois de uma discussão besta, daquelas que temos desde o namoro, sobre do que é feito o universo, as estrelas; o que é a vida – parafraseando Abujamra; direitos humanos para bandidos; marxismo cultural; que redundava sempre em perdão de joelhos, choros e imprecações, para o meu supremo e inafastável gozo, levou só a chave do carro – e o carro, óbvio –, três mudas de roupa e uma bolsa. Fodida, depois de ter dado pruma caralhada de gente, vem pedir perdão? Foda-se mais! Se fosse o caso, no mínimo deveria voltar a me perturbar com seis meses; não com um mês, recente demais. Mesmo um cegueta percebe que se convenceu de que fez merda e quer uma chance, toda boazinha, coitadinha, guti-guti. Foda-se mais! Não tem papaizinho ou mamãezinha que resolva, todos igualmente fodidos.
Aqui, tinha – tinha! – do bom e do melhor. Trabalhava, porque eu deixava, numas merrequinhas de arquitetura. Zero de empreendedorismo, visão, etc. Pobretona frustrada. Metida em “artes”. Não dava um tostão, não pagava nem a comida dos cachorros, só a porcaria do aluguel e do condomínio, “para me sentir útil”, dizia; deixei por pena. Fez umas imundices de móveis em casa, mandei arrancar tudo. Que fizesse de novo, pra aprender.
Ainda, ao fundo, a voz irritante, dengosa. Pensa que caio nessa? Foi-se o otário que comprava comidinha, quitutes, lavava a louça, arrumava a cama. Não preciso dessa cultura marxista, esquerdista inútil, não. Tenho quem faça por mim, e pago bem; é até uma caridade. Aliás, não terei mais. Homem que é homem não volta atrás. Antes vou pegar a velha e o safado do Ananias, dois que defendem a desgraçada; foram eles que deram guarida para essa armadilha. Certamente, um ajudou – e, para não perder tempo, vou lascar os dois. Deixa essa desqualificada sair…
Ah, miserável corajosa! Quer me afrontar. Pôs algo por debaixo da porta. Deve ser uma cartinha de arrependimento. Não sei se devo perder meu tempo precioso com isso. É baboseira de mulher, mimimi. Fez de propósito. Vou ler, não aguento, ela sabe que sou ansioso, curioso. Cacete. O que?! Não. Não acredito! Mandado de despejo para uso próprio. Cópia do documento do imóvel. Ordem para sair em quinze dias. A pilantra é dona do apartamento?! E não era alugado?! Inferno, não se pode morrer em paz!