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Cidade Escandalosa, um conto de Adriano B. Espínola

Cidade Escandalosa, um conto de Adriano B. Espínola

Trazemos mais um excelente conto do escritor e advogado cearense Adriano B. Espíndola, a história de Luciene num dia de pesada chuva.

CIDADE ESCANDALOSA

Era segunda-feira. A cidade, como de costume, ostentava o movimento frenético nas ruas; carros, muitos carros. Para uma cidade pobre, possuía mais carros luxuosos por metro quadrado que, necessariamente, gente que os comportasse. Ou seja, a olhos nus, um recanto que ainda guardava os ares fétidos da Belle Époque, uma pecha de gente que queria ser – e o ser, aí, jungido ao ter.  

E o detalhe mais significativo: chovia pesado. Não há um ser humano vivente nesta terra que não saiba a fatalidade de um dia de chuva; ruas ficam alagadas, barracos são soterrados por lama e lixo, e o pior, morre gente, que não entra na estatística.  

Luciene desce, rigorosamente, no mesmo ponto: na Praça das Flores, próxima ao quadrante nervoso da cidade – uns dizem coração; diria que fígado acometido de cirrose; bílis pululando em rostos imberbes e artificiosos, destilando felicidades compradas em workshops, coachings e afins.  

Pessoas se esbarrando inquietas, umas mais que outras, na ânsia de ultrapassar o primeiro obstáculo e chegar ao trabalho; quando, na verdade, eram muitas as barreiras a serem enfrentadas no dia. Assim aconteceu à Luciene, nesse denso dia de chuva, ao sair do ônibus, cenho fechado por ter perdido o guarda-chuva novo, levado pela sobrinha, alegando falta de recurso e problema nas costas, sem condições para se guiar pelas vielas do bairro, empoçadas. Empunhava, então, o material antigo, prestes a ganhar a boca do lixo. Com algumas hastes quebradas, tentava, debalde, alinhá-las para seguir.  

Mais a chuva engrossava, e as tiras d’água, junto com o vento, rebentaram o bagaço de guarda-chuva. Logo, Luciene tentou atravessar correndo a Avenida Desembargador Moreira, por onde passavam, ferozes, duas potentes correntezas, acompanhando o declive. Saltou a brecha que achou com menos água, quando foi surpreendida pela buzina de um veículo robusto, completamente escuro, e, arriscando voltar, estatelou-se no chão – pelo que, de imediato, foi socorrida por um passante, de nome Alberto, faz-tudo de profissão, contratado pela empresa vizinha à sua porque tem sessenta e cinco anos e, com isso, agiliza os pagamentos da empresa (todos sabem que seu frágil contrato está ameaçado pelos modernos serviços bancários, que tornam os trabalhadores despachantes obsoletos).  

Banhada, Luciene dava sinais de afogamento, mas era choro misturado à água da torrente, que não parava de cair; que lhe ensopara o rosto, as roupas, a alma carregada. Alberto, um senhor distinto, com uma capa que lhe cobria todo o corpo e lhe tirava, em parte, a mobilidade já comprometida, abriu metade da coberta e tentou encaixar Luciene nesse ínfimo espaço, em que, por sorte, sendo Alberto extremamente magro, era possível acomodá-la.   

Voltando ao ponto de início, Luciene conseguiu esboçar um leve sorriso de gratidão. Alberto disse que não arredaria o pé enquanto não estivesse tudo bem; que ela deveria se recuperar e seguir ao trabalho; que, se fosse preciso, lhe dava a sua capa para que não perdesse o emprego. Alberto falou a palavra crucial, que a fez rememorar os momentos mais aflitivos que passou em sua vida, esforçando-se para segurar o emprego de zeladora de uma grande corporação, ouvindo, constantemente, da chefe do setor pessoal: “Aqui, não tem moleza, não. Se botar boneco, já sabe: rua; tem uma ruma na fila!”.  

Três minutos em silêncio sepulcral. Alberto não entendia a paralisia de Luciene e coçava a cabeça, intrigado. Rondava a ideia de sustentar a casa, a mãe doente e, sobretudo, o filho de dois anos, cuidado pela sobrinha que levou o guarda-chuva novo; que recebia por isso; que achava pouco, reclamava e, vez por outra, abocanhava uns pertences de Luciene para compensar o pagamento mirrado.  

Luciene desembestou a chorar, e Alberto não sabia o que fazer; prometeu que, quando passasse todo esse sufoco, a levaria para tomar um sorvete no Del Paseo. Ela não parava por nada; não conseguia tomar uma atitude, pelo menos, para sair dali, onde as pessoas, cada vezes mais, se batiam, com raiva, pelo exíguo recinto da parada de ônibus. Uma senhora, de súbito, gritou para dois rapazes confortavelmente sentados, quase dormindo: “Ei, cês não têm o que fazer, não?! Vão para outro canto, esse aqui é meu. Sou de idade, não tão vendo?! Vou já chamar a polícia… E vocês, o que estão olhando, por que não vão trabalhar mesmo molhados? Cês são de açúcar, ou o quê?”.  

Ao ser encurralada pelo bramido da mulher, Luciene parece ter despertado da catatonia e, por sorte, escutava Alberto, que já falava há tempos e lhe alertava para os riscos de quedar ali parada. Precisava agir. Ensaiou mais uma tentativa. Contudo, a chuva dava mostras de sua cólera, parecia querer varrer o mundo; em Fortaleza não se via nada igual há cinco anos, pensava Alberto. Mas insistiam; desta feita, a valente moça, apoiada a Alberto, ocupava mais da metade da capa, e queria saltar tão forte, descoordenada, que foi preciso parar para uma advertência: “Luciene, assim vamos cair os dois; não chegaremos a lugar algum”. Pacientemente, Alberto tentava colocar as coisas nos seus devidos lugares, com a mente ocupada em superar esse desastre e deixar a donzela, sã e salva, na porta do trabalho.  

Superada a primeira das correntezas, Luciene se animou com o exercício em equipe e se lembrou das sessões infindáveis de coaching de produção; do homem muito importante, de terno e gravata, com o olhar que pairava no céu, que aparentava não saber nada de limpeza e falava de regras para a eficiência e agilidade do seu trabalho. Ela achava muito esquisito lembrar disso logo agora, mas, como não se demarca o campo das memórias e de quando vão aparecer, voltava ao questionamento: “Pra quê esse homem me ensina a trabalhar, se sou a que mais dá duro aqui e que passo tudo, inclusive, para as novatas?”.  

Luciene ouvia Alberto longe, pois que não parava de falar; e, aos poucos, retornava à realidade e percebia o homem reclamando do salário; da exploração, porque teria de trabalhar de oito às dezoito, na maioria das vezes em pé, mesmo que houvesse horário de descanso; e que, se pedisse as contas, deixaria a esposa e o filho com esquizofrenia desamparados; não queria voltar a ser vendedor ambulante, porque lhe tinham como mendigo e, nalgumas vezes, roubavam-lhe as economias ou as mercadorias.  

Mesmo com a aparente disposição, Alberto, no curto caminho, declarara a Luciene que sofria de “problema nas juntas”, bursite no quadril, que teria omitido na consulta admissional para não perder o emprego; que, quando chegava a casa, a esposa lhe aplicava compressas de gelo e o famoso sebo de carneiro, comprado nos ônibus, que diziam ser um santo remédio, e o tinha ajudado, de fato; ainda, quando a crise estava de rasgar as entranhas, tomava um anti-inflamatório e pedia dispensa por uns dias, alegando gripe ou algo do tipo. Não imaginava ser descoberto; seria a desgraça da família, porque os remédios de todos, somando, davam a bagatela de quinhentos reais por mês, e ele ganhava o dobro disso, para, com o resto, comprar a alimentação e pagar o aluguel, de, também, quinhentos reais – ajudavam os trocados da aposentadoria da mulher.  

Faltava apenas uma barreira, na Avenida Santos Dumont, onde o aguaceiro se acumulava. Apesar do dia e dos imensos contratempos, Luciene se alegrava em conversar com Alberto, a quem, nos últimos dois anos, secamente cumprimentava, com medo de enxerimento; pois que, não raro, recebia cantadas do zelador, do porteiro e do vigia, este mais incisivo, chegando a agarrar-lhe pelo braço: “Não me escuta, não?! Tá mouca?!” – razão pela qual dava a volta no quarteirão com medo de ser agredida pelo guarda-roupa.  

Alberto estampava um sorriso natural; sorria com os olhos, mesmo ao falar das coisas que lhe magoavam. Luciene queria entender essa arte de sorrir sem querer; de ser transparente, a ponto de se ver a alma limpa.  

Estava sendo conduzida, literalmente, por Alberto, porque pensava na mãe e no filho – a essa hora a sobrinha e a mãe estariam secando os baldes e, de pronto, recolocando-os nos devidos buracos. A casa, da época da bisavó, convertia-se numa peneira, comprometendo a estrutura e os eletrodomésticos – dois, em especial, a geladeira e o micro-ondas.  

Luciene sentia sono, piscava os olhos com a voz doce de Alberto, uma vez que teria passado a noite em claro, aparando as goteiras; separando móveis, camas e pessoas. Estava cansada, além do mais, e aguentaria até onde desse, se fosse o seu destino, encangada às demandas, sempre urgentes, da empresa.  

Alberto se despediu, quando encostaram na porta de sua empresa. Pediu que não se esquecesse dele, que tinha gostado muito de conversar com ela. Luciene pensou que pudesse estar falando de outra pessoa; mas aquiesceu, chamando-o para almoçar no carrinho de variedades do Tonho, logo em frente, com pratos prontos no valor de dez reais, com suco e um tablete de doce de goiaba ou de banana. Ele topou, com um sorriso no rosto, seguindo seu fardo diário: o banco, na outra esquina.  

Luciene, em frangalhos, podendo ter cooperado como figurante para um cena de filme de desastre humanitário, tão em voga, resolveu andar mais uns poucos metros e entrar pelos fundos, para não assustar a chefe. Na hora que botou os pés na copa, apareceu quem não devia, a própria, munida de papel e caneta, bufando. Asseada, cândida, com coque no cabelo, roupa impecável; salto alto e um perfume inebriante, rugiu, sem esperar explicações, que Luciene estava despedida, por insubordinação e por faltar ao trabalho.   

Luciene, sem reação, só conseguiu mirar o relógio na parede, que marcava sete e trinta: meia hora de atraso. “Mas dona…”. “Basta! Não quero saber de enrolação. Vá atrás de sua bolsa família! Tem mesmo cara de preguiçosa”. E saiu resmungando: “É assim que o governo deixa as pessoas… Dão o peixe e não ensinam a pescar. Esse país não vai pra frente!”.  

Sobre o autor

Adriano B. Espíndola Santos é natural de Fortaleza, Ceará. Em 2018 lançou seu primeiro livro, o romance Flor no caos, pela Desconcertos Editora; e em 2020 o livro de contos, Contículos de dores refratárias, pela Editora Penalux. Colabora mensalmente com a Revista Samizdat. Tem textos publicados em diversas revistas literárias nacionais e internacionais. É advogado civilista-humanista, desejoso de conseguir evoluir – sempre. Mestre em Direito. Especialista em Escrita Literária. É dor e amor; e o que puder ser para se sentir vivo: o coração inquieto. 

Flor de arribaçã, um conto de Adriano Espíndola Santos

É dor e amor; e o que puder ser para se sentir vivo: o coração inquieto.

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