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Farândola, de Maria Cristina Martins

Farândola, de Maria Cristina Martins

Indo da casa, do familiar, do doméstico, e tomando as ruas, Farândola vai se tecendo como uma aliança, nesse movimento que se desdobra e vai encontrando seus pares, dando as mãos pelo que se reconhecem em suas estranhezas, porque é a condição de estar fora de lugar, fora da ordem, que os une.

Organizando a teimosia não como se arruma o armário, mas como quem expõe a perturbação da ordem, o ruído, o avesso, o fora de lugar, a poeta vai talhando um caminho que vai da casa à rua, do privado ao público, do pessoal ao coletivo, do amor à política. Na dupla chave do familiar-não familiar, Farândola vai criando laços que se entrecruzam em uma dança centenária que conecta a história de uma mulher “com a dança dos maltrapilhos/ a fome e a sede dos saltimbancos/ de tomar as ruas e dançar”. Indo da casa, do familiar, do doméstico, e tomando as ruas, Farândola vai se tecendo como uma aliança, nesse movimento que se desdobra e vai encontrando seus pares, dando as mãos pelo que se reconhecem em suas estranhezas, porque é a condição de estar fora de lugar, fora da ordem, que os une. Ir de mãos dadas (Drummond é um interlocutor importante neste livro) com os que vivem em precarização, os banidos da lei, como os endividados, os camelôs, os mendigos, os sem-teto, estar entre eles, no meio deles, correndo com eles, como lemos em “Estranhos”, é fazer dessa estranheza uma ética e uma política, um modo de estar no mundo, um modo de (não) se sentir em casa. 

Trecho do prefácio da poeta e doutora em teoria literária Danielle Magalhães

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Hilda (seção “O amor é uma festa fortuita”)

hilda pinta os lábios de vermelho 

nem se nota o vermelho que escorre 

– Mentira 

importante é falar dos defeitos 

justificar o sangue 

despejar sobre hilda 

as frustrações de uma vida inteira 

hilda tem mais compaixão do que raiva 

passa distinta quase em reverência 

quase diz bom-dia 

dançarina do improviso e do caos 

mas eu não 

todo dia tenho ganas de vingar hilda 

Heterotopia (seção “A memória é um moinho de vento”)

A janela do quarto de não dormir 

que também é escritório  

e lugar de chorar 

me leva para um país  

inventado 

Foi lugar de amamentar  

quando o bebê não se perdia 

no Cascão em miniatura 

no cacho de uvas sem uvas 

A janela mostra  

o trecho de uma rua 

entre dois prédios 

um terreno baldio 

árvores remotas 

luz grave 

o vento presumido é ameno 

Como era na outra casa  

onde havia saguis e gambás 

e eu juro que uma vez 

dois tucanos pousaram na cerca 

Lá é melhor do que aqui 

porque não estou lá 

e quando estava 

não era agora 

Cotidiano (seção “Parir é uma fenda no tempo”)

não é que a poesia  

me cause dor nas costas  

ou me tire o sono  

da madrugada 

não é que as crianças  

sejam caixas-pretas 

como os cachorros  

quando latem demasiado 

dentro do silêncio 

de tudo o que vi 

até agora 

nada é tão doce e agudo 

nem há vaga maior no mar 

parir poema  

ninar cachorro 

escrever criança

SOBRE A AUTORA

Maria Cristina Martins, carioca nascida em 1977, escreve, dança e pinta. Formada em jornalismo (Uerj) e história (UFRJ), é preparadora e revisora no Arquivo Nacional. Publicou os seguintes crimes: ovos de ferro (poesia, 2016, 7letras), Entre máscaras: histórias do interlúdio (coautoria, prosa, 2021, s.l.) e Farândola (poesia, 2021, selo Bem-Te-li/Autografia). Outros delitos podem ser encontrados no instagram @farandola.mariacristinamartins. 

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