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Juno, Nashville e Lo-Fi, de Ravenna Veiga

Juno, Nashville e Lo-Fi, de Ravenna Veiga

Ambientado no período da pandemia global que ainda vivenciamos, trazemos o conto de Ravenna Veiga, num fluxo de consciência de linguagem ágil e precisa, que une ficção e a tragédia da realidade. 

Juno, Nashville e Lo-Fi : realidade crônica sob(re) o filtro da mentira. Resolvi falar da verdade mais terrível e das pessoas reais sob o filtro da ficção. Explico: a realidade não da conta de dizer a si mesma, é preciso editá-la. Sabe quando você vê aquele céu lindo, azul, e a câmera do seu celular não dá conta de toda a beleza? A foto parece opaca e a experiência, vibrante! Talvez se você diminuir ou aumentar algumas coisas, talvez se aplicar um filtro, dará a ver e sentir a real experiência de olhar para aquele céu. Pelos motivos enunciados resolvi tratar de uma história real, que ocorre no exato momento em que escrevo, sob – e sobre – condições vividas por todos nós. Sob filtros, sobre filtros: nas imagens e nas palavras. Prólogo: Reyes Os móveis planejados ocultam o tamanho pequeno dos cômodos e as paredes texturizadas são ocas, pré fabricadas. As suculentas em compartimentos quadrados abaixo da pia do lavabo são as plantas preferidas porque não morrem se lhes faltar cuidado diário, podem conservar sua boa imagem sem que haja, de fato tanto apreço por elas. As formas são precisas e a paleta de cores, harmônica, em tons pastéis e cinzas claros. O apartamento é perfumado por um dispositivo que, de tantos em tantos minutos, espirra essência artificial de eucalipto (isso não pode ser visto nas fotos, mas é sugerido por elas, pois algumas fotos têm cheiro). A varanda ampla, que contorna toda a extensão do andar é especialmente pensada para acolher a luz. O sol se transforma quando adentra esse tipo de casa mostruário. Desfaz-se da qualidade de astro e torna-se holofote: fica mais pálido e ameno, mais distante. Deixa de ser sol, bem como as pessoas, aqui dentro, deixam de ser pessoas e se tornam pessoas mostruário. Da varanda ampla se vê a Mata Atlântica que mal existe, mas aquele pedacinho distante de verde encarece cada centímetro quadrado do imóvel. Não está muito longe, mas aqui não chega o cheiro do mato. O mar fica no final da rua e a poeira da casa é areia trazida pelo vento, essa poeira litorânea é única lufada de verdade aqui. Estamos no vale dos perfumes plásticos, do odor de coisa recém-comprada e do assombro do comopode-esse-chão-de-porcelanato-ser-tão-limpo. A dor aqui vivida parece meditação. Sem espasmos ou soluços, mas determinada forma de se refastelar no sofá e contar a passagem do tempo pelos toques na tela do celular. A anestesia é dosada de forma homeopática, tão mais elegante que a tarja preta das verdades indizíveis. Vivemos baixando a saturação e aquecendo a foto, usando algum filtro pronto: Reyes, quem sabe. Juno Meu celular toca e o que escuto não são notícias sobre as férias numa praia paradisíaca, mas a voz chorosa de uma senhora, tão desencontrada de si quanto a vida nesse apartamento de classe média. Deitada no sofá mostruário, sinto um frio na barriga porque aquilo é tão humano que não cabe na fotografia. É aquela voz ancestral da avó, igual à da bisavó, da tataravó, a voz do mundo encarquilhado e cheio de rugas. Voz das árvores distantes que vejo da varanda ampla e ensolarada, árvores fadadas à morte. Voz de folha seca, opaca mesmo, sem que o aumento de saturação torne-a quase fluorescente – é florescente enquanto velha quase morta – mas quase morta ela não se sabe. Juno nunca irá ler este texto, porque talvez morra antes que ele seja publicado, ou porque simplesmente não folheia mais do que palavras-cruzadas e revistas, no passado gostava de livros espíritas, mas já são muito para seus olhos cansados. Por isso e só por isso, posso romper o filtro de cores publicáveis e dizer a verdade: a morte está por perto, Juno. Não é só o presidente quem está fazendo isso, que está escondendo a iminência da morte de cada cidadão. Nós fazemos isso o tempo todo. Higienizamos a vida pelas cores pacatas, pela luz amena e pelo silêncio de imagens estéreis. Não sou fotógrafa, mas imagino que possamos narrar a vida pelas fotografias. O que sei é que já não vivemos no mundo das fotos post mortem. Talvez o memorial da avó seja uma foto da juventude. Qual seria o filtro? Creio que o filtro seria Juno, para deixar seus cabelos de menina ainda mais pretos e não lembrar que nos últimos dias perderam a cor. Não desbotaram para o branco da idosa padrão da publicidade, tornaram-se cinzentos como seu olhar. Que as pessoas guardem sua imagem mais bonita e não a verdade de sua lenta degradação. Juno, além de filtro do Instagram é também o nome romano para Hera, a mãe de muitos deuses e esposa de Zeus. Afinal, os romanos editaram a mitologia grega sob seu próprio filtro. Minha avó não faz ideia de que, em algum lugar, será publicado um conto que fala de sua morte, escrito enquanto ainda vivia sem saber que aqueles eram seus meses derradeiros. Mas é claro que Juno sabe que quando morrer, seus filhos e netos postarão fotos suas nas redes sociais. Ela só não sabe o quão perto está da morte. Não lhe foi contado, porque esse tipo de dor intempestiva não cabe nessa vida mediana que vivemos agora. A diferença é que a mentira virtual, o feed de notícias, a pedra da sepultura ou a duração das lágrimas não podem ser tão eternos quanto as palavras. Desse modo, com as palavras que aqui escrevo, construo para ela uma lápide eterna. Talvez eu decore estas palavras para que não morram antes de mim, ainda que as palavras escritas sejam abolidas por uma ditadura ou invasão alienígena, ainda que nosso idioma desapareça, e assim como Juno, seja letra morta e nem mesmo os acadêmicos do futuro a conheçam. Como sepultura eterna eu vou murmurar essas palavras nos ouvidos de alguém, caso um dia eu mesma saiba que estou perto de morrer. Vou, é claro, pedir que passe adiante, que compartilhe. Por favor, alguém mais pode decorar esse texto? Perdi minhas fotos de cinco anos atrás, deletei a conta e não as salvei. Jogaram no lixo, como inúteis velharias, as fotos impressas de minhas bisavós e tataravós. Foram trituradas por máquinas ou incineradas. Tenho muito medo de que meus bisnetos nunca saibam quem foi Juno, uma das mulheres que me criou. Talvez se alguém decorar esse epitáfio, ele não se perca como todos os outros, então quem puder o faça! Juno pertence a um mundo que não foi exatamente deletado, mas que aparece em galerias de notícias curiosas, fotos vintage, os gabinetes de variedades on-line. Minhas preferidas são as fotografias de carnaval: Juno chinesa, Juno odalisca, Juno havaiana. Depois temos Juno casando, Juno num dia muito especial com os filhos e finalmente, Juno segurando sua neta pequena: eu que falo com vocês agora. No tempo dela, os dentes eram amarelados e os cabelos porosos, era bonito parecer mais velho e ter costeletas se fosse homem. Ainda era possível olhar com ingenuidade para a bandeira nacional. Os acontecimentos posteriores e os atuais ajudaram a matá-la, sem dúvidas, pois Juno odiava a ditadura e todos os que se remetiam à ela. Nesses meses derradeiros de vida, ela não acessa o Instagram ou o Facebook, mas fico pensando se veria sentido em ser recordada como alguém que não existe. Quem está tão perto da morte desejaria ter seu lugar tomado por um duplo brilhante, de pele lisa e alto-contraste? Juno nunca fez uma plástica sequer, abominava-as. Ela aceitaria que seus últimos registros, que sua última chance de retrato simplesmente não a mostrassem? Ela talvez não seja fotografada muitas vezes nesses dias derradeiros, mas Juno chinesa, odalisca, Juno havaiana, noiva, mãe e avó não sabem o tamanho da edição que será feita: não sua imagem, mas os últimos momentos de sua vida serão editados. No telefone, ela me conta que está se sentindo melhor, diz que vai vencer a batalha. Mentalmente completo: não te deixaram saber contra o que está lutando. Juno tem câncer terminal, e sua filha decidiu não lhe contar, ela pensa que convive com as sequelas temporárias de um AVC. O que ela assim considera, o incidente que a levou ao hospital, foi o resultado da metástase agindo em seu cérebro na forma de catorze tumores. Nada mais pode ser feito, ela irá morrer em um mês. Nashville Aqui entra Nashville, aquele filtro retrô de cores oníricas. Ele não é exatamente uma ficção, pois retrata perfeitamente o mundo sob a ótica da mentira: entre opaco e furta cor. Assim é minha mãe, que tomou a decisão de filtrar os últimos dias de alguém. Afinal, nossa vida virtual nos convenceu de que é possível apagar a dor reduzindo sua saturação, diminuindo a estrutura da vida, atenuando as sombras e tornando as cores pastéis. Dessa maneira, não permitiu que Juno soubesse que está morrendo. Nashville, nesse momento, cuida do marido internado com COVID-19 e posta palavras de fé nas redes sociais. Ela já não consegue nem ao menos enxergar a própria imagem real no espelho de seu pictórico lavabo cheio de suculentas ou no banheiro perfeitamente limpo do hospital particular. Não sabe que está sendo valente, porque de tanto filtro em seus olhos, convenceu-se de que é tão frágil e efêmera quanto sua timeline. Aos cinquenta anos, pensa que é preciso mentir para suportar. Filtrou-se não mulher, filtrou-se de si e filtrou o coração dos outros da dor. Em meio ao grande sofrimento que precisa ser apagado, editado e desaparecido, perdeu-se dos fatos: valentemente cuida de Juno em seus últimos dias, de um marido adoecido e da filha adolescente. Nashville não é só uma foto opaca de tons pastéis, Nashville é gente. Quando moça, era modelo fotográfica. Acho curioso ser capaz de reconhecer seu rosto naqueles retratos velhos, com um permanente pronunciado em seus cabelos naturalmente lisos, com muita maquiagem e mais de trinta anos a menos. Reconheço Nashville com um véu preto no rosto, no ensaio que fez num edifício histórico da região. É curioso pensar que minha mãe foi modelo. Conhecendo as modelos de hoje me pergunto: suas filhas, que dormem e acordam na mesma casa, são capazes de reconhecê-las nas fotos dos ensaios? Nashville também sempre foi bonita, sem que fosse necessária qualquer edição, ainda que, segundo ela, a vida não seja possível sem a mentira. Não entendo o motivo: por que alguém precisa mutilar a vida e pasteurizá-la em imagens artificiais? Nashville tem medo da dor e posta fotos de seu apartamento mostruário, de seus gatos de raça, de suas filhas e de seu marido. Apesar de tudo ainda tem aquela inocência típica das mulheres mais velhas nas redes sociais, não sabe tirar fotos de si mesma e nunca parece tão linda quanto ainda é. Porque a verdade é que Nashville não cresceu para fotografar a si mesma, mas sim ser vista pelos olhos dos outros. Quando recebeu o resultado dos exames de Juno, não pensou no trabalho para ocultar a mentira que estava prestes a contar, não pensou que se privaria de viver a morte lenta da mãe, uma experiência e tanto. Pensou no medo, medo da sua dor e da dor dos outros, pensou nas filhas suportando o sofrimento profundo da avó, pensou no marido que lidaria com a sogra afundada em amargura e reclamações. Preteriu o abraço derradeiro que poderia ter da mulher que a colocou no mundo, não cogitou que talvez Juno gostasse de se despedir da vida, não pensou em nada que fosse carne. Achou melhor afundar as nossas vidas na rotina opaca da mentira a deixar que o sofrimento vibrasse em todos nós. Nashville vê a vida pelo filtro da imaterialidade, continua sendo modelo fotográfica, hoje em dia isso é feito com a beleza da indiferença e das cores pastéis. No mundo de Nashville, o sol não tem calor, apenas uma luminosidade diáfana que não provoca suor ou qualquer desagrado. Ela precisa ter no lugar dos olhos um par de lentes mitômanas, pois Nashville, e não a mulher-minhamãe, precisa sobreviver a todas as vidas. Quando um dia eu mesma enterrar minha mãe, talvez eu também tenha mentido para ela, talvez eu também more numa casa mostruário, pois nós todas morreremos, mas o filtro da mentira irá perdurar. Lo-Fi Tenho a sensação de que sou Lo-Fi. Pesquisei sobre esse filtro e encontrei as seguintes características: aumento de contraste, cores mais saturadas, valorização das áreas escuras da foto. Sim, sou mesmo Lo-Fi. Sinto-me assim pelo simples fato de escrever esta crônica e de contar a verdade a centenas de estranhos, a verdade que falta sob o teto de minha casa. Saturando a verdade, torno-a mais evidente do que o faz a apatia de quem vive o um-dia-após-o-outro da doença grave, vejo o contraste entre verdades e mentiras. Num ato de meditação esotérica, olho para dentro de mim no momento em que atendo o telefonema de Juno, com sua voz já muito frágil, dizendo que vai vencer a batalha. Vejo a sombra e não fujo dela. Num mergulho profundo escrevo para vocês a mais verdadeira farsa que já escrevi. Farsa porque arte, porque metáfora, porque recorte poético, verdade por ser uma das maiores dores que já experimentei e por saber: ela não é privada, é pública e exposta em cada perfil no Instagram. Não posso desmentir Nashville. Moro em outra cidade, fui embora de casa ha muito tempo e estou aqui passando alguns dias. Quem secará as lágrimas quando Juno chorar sua doença não serei eu. Não serei eu quem vai trocar as fraldas dela, nem mesmo vou arcar com os custos do velório, só vou sofrer muito e postar uma ou duas fotos na internet, mais algumas outras nos aniversários de Juno. Com o tempo não vou me lembrar mais deles. Ainda assim a dor é maior enquanto a escuto esforçando-se e finalmente conseguindo cessar as lágrimas, prometendo a si mesma que ficará bem. Juno não ficará bem e eu, Lo-Fi, sei disso enquanto escuto com angústia e paciência. Nada aqui relatado é ficção, ficções são apenas o que contamos a nós mesmas e umas às outras. Tenho esse modo difícil de falar com o mundo das imagens: a escrita. Portanto é preciso aumentar e evidenciar algumas coisas. Eu não choro tanto quando recebo as notícias sobre a saúde de Juno quanto chorei escrevendo algumas frases que vocês estão lendo agora. Sou Lo-Fi, saturada de determinado modo de vida, aficcionada pelas sombras, alimentando-me do masoquismo de revelá-las para expor, evidenciar. Esse não é um conto sobre três mulheres da mesma família, é uma crônica sobre três filtros do Instagram. Nós três somos pretextos porque no momento vivemos essa história dolorosa, pela qual jamais vamos nos perdoar: Nashville por ter mentido, Lo-fi por não ter contado nada à avó e sim feito metáforas poéticas para estranhos e Juno por ter partido afogada pela mentira, sem ter direito à despedir-se da vida real. Nossas imagens se apagarão com o tempo, um dia eu e Nashville também vamos partir, também seremos esquecidas, mas os filtros continuarão existindo. Não importa de quem é a imagem, não importa se todas as fotos forem deletadas e surgirem novas, sempre existirão os filtros. Há vinte anos, Juno deixou que sua mãe, Willow, morresse sem saber que tinha câncer na bexiga. O Instragram ainda não existia, Nashville era uma moça, eu, Lo-Fi, uma criança e minha irmã, Earlybird não tinha nascido. Com isso quero dizer que o Instagram nos deu exatamente o que queríamos. Casou perfeitamente com nossas intermináveis ficções sobre nossas vidas privadas e cada um desses filtros condensa uma maneira de fazê-lo, algo que já existe muito antes de qualquer registro fotográfico. Encontramos o caminho para materializar nossas mentiras em cores e luzes facilmente editáveis. Até mesmo eu, Lo-Fi, sou uma completa mentirosa, muito mais do que as outras. Nenhuma delas se deu ao trabalho de sentar e ficcionalizar a própria mãe diante de completos estranhos para refletir sobre a sociedade, a comunicação e a vida. Epílogo: Earlybird Earlybird não sabe que escrevi esta crônica e eu não quero que ela a leia, nunca. Nesse momento ela joga videogame em seu quarto decorado com os motivos de sua saga fantástica favorita. Um dia ela vai crescer e entender o que são escritores, prêmios e revistas de arte. Um dia eu deixarei de ser a irmã excêntrica com uma profissão estranha, que saiu de casa só dois anos mais velha do que ela e foi viver a própria vida: queria ficar longe de Juno, Nashville e suas respectivas mentiras. Cuido de Earlybird para que ela não fique muito ansiosa enquanto o pai está no hospital com COVID19, ela também sabe que Juno está morrendo. Tudo isso me parece muito para uma menina, mas Earlybird já entendeu muito bem como se edita a própria dor: nasceu sabendo. Ainda não a vi chorar, mas sei que chora escondida. Quero arrancar a dor de Earlybird, a minha já quase não sinto. Amanhã vamos pedir comida e fazer maratona de filmes, vamos nos divertir para que ela se distraia, para que não chore ou se sinta mal. Amanhã vamos tirar fotos juntas e quem olhar para elas não vai saber o que está acontecendo em nossa casa. Juno está morrendo, o pai de Earlybird está na UTI e o que teremos para o futuro serão algumas imagens de nós duas, em casa, sorrindo. Daqui a dez anos, se essas fotografias ainda existirem, talvez eu me esqueça de como foi o dia em que elas foram tiradas e talvez as palavras que agora escrevo me relembrem. Talvez ela sirva para me contar a verdade quando ela for esquecida. Não haverá jamais a legenda no meu Instagram: eu e minha irmã tentando lidar com a possibilidade da morte das pessoas que mais amamos. De qualquer modo, não quero que Earlybird leia este texto, porque é triste. Não quero que saiba que recebeu o nome de um filtro e que eu, Lo-Fi, notei que é isso o que fazemos de nós. Não nós mulheres dessa família, nós sociedade. Chamar minha irmãzinha dessa maneira parece um palavrão, um xingamento e ao mesmo tempo a verdade mais dolorosa. Ela irá crescer e editar a própria vida como bem entender em algum novo app, quando os que os usamos hoje saírem de moda. Também não quero que Earlybird saiba que tudo isso existe dentro da sua irmã. Quero ser uma irmã mais velha normal, como nos filmes e no mundo das ideias. Sinto que eu não conseguiria olhar para ela outra vez se a verdade de quem sou aparecesse dessa maneira. Eu pareço horrível pelo ato de violação de intimidade que cometo. Earlybird, se estiver lendo, por favor, não me conte que leu. Eu preferia que você jamais soubesse quem eu realmente sou, não nesse nível de profundidade apenas conhecido por pessoas estranhas. Preferia que você jamais soubesse daquele telefonema de Juno afirmando que iria se recuperar, ou que acho Nashville uma mentirosa costumaz apesar de amá-la como mãe. Earlybird, por favor, minta para mim caso tiver lido estas palavras. Vamos agir como se tudo isso simplesmente não tivesse acontecido. Precisamos continuar. ***** Edit: Juno faleceu no dia 18/08/2020, menos de um mês após a escrita desta crônica. O marido de Nashville ficou em estado crítico, entubado, mas sobreviveu após 47 dias na UTI. Nashville não compareceu ao velório da mãe, seu marido não poderia saber da morte de Juno, ou sua recuperação poderia ser afetada pelo estado emocional. Nashville teve de mentir mais uma vez: durante uma semana, ela teve de sorrir. 

Na mitologia grega, Cassandra é a profetisa amaldiçoada por Apolo ao recusá-lo: é condenada a prever a desgraça e não ser acreditada. Diante de um mito fundante para pensar a deslegitimação das vozes femininas, a obra é constituída por contos criados a partir de experimentos corporais. Cassandra caminha pelas ruas de São Paulo como dispositivo que permeia um eu-lírico instável. Vários sujeitos se comunicam através do corpo-oráculo: Hécuba, Polixena, Helena, Ifigênia, Clitemnestra e outras personagens presentes nas obras de Eurípides e Ésquilo. Mulheres míticas aparecem nestas páginas como vozes da metrópole. A história da queda de Troia e do presente dado pelos gregos é apresentada em narrativas fragmentadas de um país que ignorou os avisos dos oráculos, provocando o massacre dos seus. Contemplado em primeiro lugar pelo PROAC, da Secretaria de Cultura e Economia Criativa de São Paulo.

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Sobre a autora

Ravenna Veiga, performer e escritora, interessada no feminino em mitologias, no trágico e nas interações entre as artes do corpo, escrita poética e suas tensões com a tecnologia. Foi contemplada pelo edital Arte Como Respiro: Múltiplos Editais de Emergência (2020), do Itaú Cultural, com a obra *Futuro (6 caracteres)*, e em primeiro lugar pelo ProAC, em 2019, com o projeto de performance/literatura *O Silêncio de Cassandra*, dentro do qual está sendo realizada a série de videoperformances *APP Êxtase – Videovisões performáticas, *também a publicação do livro pela Mocho Edições (2020). Tem contos publicados nas revistas Pixé (2020), Ruído Manifesto (2019) e Faísca (Revista Mafagafo). Como atriz, junto à Cia Vento Áureo, se encontra em processo de montagem a partir dos hinos homéricos, cuja abertura *Louvor às Deusas* (2020) foi realizada na Casa Guilherme de Almeida, no VI Encontro de Tradução dos Clássicos no Brasil, com canto em grego antigo por Ravenna Veiga, recitação em português por Maria Vitória Siviero e canto em grego, direção e tradução de Rodrigo Bravo. Cursou Comunicação das Artes do Corpo na PUC-SP com habilitação em Teatro. Foi artista residente do Centro de Referência da Dança de São Paulo. É colaboradora do Acervo Bajubá, sediado na Casa 1, acervo que visa salvaguardar a memória das produções artísticas e culturais LGBT Brasileiras. 

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