O burguês e o crime – Conto de Carlos Heitor Cony

Carlos Heitor Cony nasceu no Rio de Janeiro em 1926. Eleito para a Academia Brasileira de Letras em 2000, recebeu, entre outros, os prêmios: Machado de Assis, da ABL, pelo conjunto da obra, em 1996; Jabuti de 1996, da Câmara Brasileira do Livro, pelo romance Quase Memória; Nacional Nestlé de Literatura de 1997, pelo romance O Piano e a Orquestra; Jabuti de 1997, pelo romance A Casa do Poeta Trágico; Jabuti 2000, concedido ao Romance sem Palavras. 

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O burguês e o crime

Foi durante a noite que, de repente, ele se fez a pergunta:

— Por que não?

A pergunta finalizava a série de pensamentos que haviam começado horas antes, quando estava no teatro. Fora com a mulher assistir a uma peça de sucesso, com artistas de sucesso, estréia recente e também de sucesso. As duas primeiras noites haviam sido dedicadas à alta sociedade, às classes produtoras, ao Corpo Diplomático, às autoridades constituídas e a penetras de diferentes origens e feitios. Na altura da terceira apresentação, ele chegara em casa e a mulher o intimara:

— É o fim, Figueiredo! Todo mundo já viu a peça, menos nós. Tem de ser hoje.

Uma semana depois, a peça seria suspensa por falta de público, mas naquela terceira noite ele teve de se acotovelar na entrada, discutir com os bilheteiros e terminar sendo explorado por um cambista que lhe vendeu duas péssimas poltronas com ágio pesado e imerecido.

Suportou, lá dentro — e estoicamente — os primeiros momentos da peça, mas ainda em meio ao primeiro ato desanimou de procurar entender o que se passava no palco. Era um drama complicado e palavroso, uma jovem que tinha neurose e amantes, um analista, uma enfermeira lésbica e, presidindo a tudo, um pai severo e asmático. Em suma: um conflito acima de suas possibilidades e de seu interesse.

Quando ia ao cinema, sempre podia dormir quando o filme seguia um rumo surpreendente assim. No escuro o cochilo ficava impune, a mulher nem suspeitava. À saída, ele concordava com a opinião da mulher e conseguiam chegar em casa sãos e salvos. Mas no teatro era difícil o cochilo. Havia luz, e pior que a luz, havia sempre a iminência de algo espantoso, o cenário despencar, a roupa da atriz cair, um ator ter enfarte ou esquecer o texto, um fósforo botar fogo no pano de boca. Tais e tantos atrativos impediam-no de dormir, mas propiciavam discreta dormência, o pensamento solicitado ora pelo calor, ora pela peça, ora ainda pelo pigarro de um velho na platéia, ou pelo sapato um pouco apertado que Ema — a mulher — o obrigara a usar.

Tivera um dia calmo, calmos eram todos os seus dias. A firma, apesar do sócio que era uma toupeira, prosperava. Saúde boa, perspectivas boas. Não tinha motivos para pensar no futuro ou no passado. Sobravam-lhe motivos para dormir no presente, a peça já era um motivo.

A frase, dita por alguém no palco, chamou-o de volta. Ele já contara as pregas do lado direito da cortina que compunha o fundo do cenário, e preparava-se, resignado, pra contar as pregas do lado esquerdo, quando ouviu alguém falar em morte.

Não, não ameaçavam ninguém de morte. O drama do palco era existencial, não continha mortes nem ameaças de. Fora uma frase convencional, assim como “não devemos matar a velha de susto”, ou “se a velha souber disso pode morrer”.

Matar ou morrer? Não chegava a ser uma opção, nem no palco, nem em sua vida, mas uma série de pensamentos que tinham, ora a sua lógica, ora o seu absurdo, e em ambos os casos, a sua conveniência. Evidente, não pensava nunca em sua própria morte, mas sabia que havia gente que morria e gente que matava. Os que morriam eram os doentes, os suicidas, os atropelados, os assassinos, os passageiros de avião ou da Central do Brasil. Os que matavam eram os criminosos, os ladrões noturnos, os tiranos, os motoristas de ônibus. 

Não era agradável pensar em morrer. Logo retirou este elemento de sua opção e ficou apenas com o matar. 

Matar o quê? Matar para quê? Na peça, falavam em matar uma velha de susto. Ele não tinha velha nenhuma à vista. A mãe já morrera, as parentas de velhice mais agressiva também já haviam morrido. Havia a sogra, ainda, mas não chegava a ser uma velha, e, além do mais, era uma excelente pessoa. 

Se não adiantava matar uma velha, matar o quê? 

Matar por matar, amor à arte, eis a questão. Matar para experimentar os nervos, ou para provar a si mesmo do que era capaz. Sim, isso justificava um crime. Mas para provar do que era capaz, não bastaria matar — isso qualquer idiota poderia fazer. Tinha de matar e permanecer impune — para poder se olhar no espelho e se sentir redimido, confiante: sou um caráter! 

Foi então que surgiu o problema — que seria, nos próximos dias, o seu problema, o único problema realmente sério de sua vida — como obter o crime perfeito? Matar o porteiro de seu edifício, por exemplo, nunca seria um crime perfeito. Mais cedo ou mais tarde a polícia apertaria os moradores do prédio e ele acabaria confessando. Para matar impunemente teria de escolher um comerciário de Brás de Pina, uma funcionária subalterna que voltasse, tarde da noite, para o Leblon. 

Mas seria estúpido matar sem motivo, embora matasse perfeitamente. O crime perfeito, sem lucro pessoal, não lhe interessava, aliás, pensando bem, agora que o primeiro ato terminava, nenhum crime lhe interessava. 

Teve coragem para o comentário. 

— Uma peça muito profunda! 

A mulher não concordou nem discordou. Apenas disse: 

— Vamos esperar pelo resto. Acho que vai sair um escândalo! 

Foi a vez de ele concordar, embora não suspeitasse que tipo de escândalo estava prestes a estourar. Saiu para o hall circulou entre estranhos, bebeu um gole d’água gelada, sem sede mesmo, só para passar o tempo. 

Durante o segundo ato os pensamentos seguiram outro rumo. Surgiu no palco um pastor protestante. Surgiu também um militar reformado que era mudo — e ele começou a pensar em como seria sua vida — e como seria ele mesmo — se não tivesse voz. 

Chegou à conclusão e ao fim da peça: poderia manter o mesmo padrão de vida se, por acaso, ficasse sem voz. Era-lhe coisa inútil, espécie de adorno. Para ganhar dinheiro e dormir com a mulher — a voz era dispensável, uma responsabilidade incômoda. 

Ao saírem, cumprimentou com a cabeça alguns conhecidos e fez a viagem de volta imaginando-se mudo. Conseguiu chegar em casa sem ter pronunciado uma só palavra — o que não era uma vantagem especial, sempre que iam ou que voltavam de algum lugar, a mulher é quem falava, ele apenas ouvia. 

A grande oportunidade para testar a sua disciplina interior foi ao guardar o carro na garagem. Todas as vezes tinha de pedir à mulher que suspendesse o vidro da porta: 

— Suspenda o seu vidro, Ema. 

Àquela noite, engoliu em seco e esperou que a mulher saísse para, então inclinar-se no banco, com algum esforço para sua espinha já bombardeado por sedimentações calcáreas que prenunciavam um respeitável bico-de-papagaio, e rodar a manivelinha até fechar o vidro. 

Na cama, preparado para dormir, a palavra primeiramente, e o conceito depois, retornaram à sua cabeça e às suas preocupações: matar. Há muito não tinha insônia. A firma prosperava, vendia material de escritório aos ministérios militares, era pago em dia, e não faltavam encomendas, tanto Marinha como o Exército e a Aeronáutica — felizmente para ele e para Pátria — gastavam mais em papel timbrado do que em pólvora. 

Geralmente, caía duro em cima da cama. De quinze em quinze dias ou de vinte em vinte dias, procurava a mulher para um amor apressado e quase sempre incompleto da parte dela. 

Quando percebeu as horas, viu que gastara a noite toda pensando. Tinha disciplina interior feroz e eficiente. Se dormisse até as 9, estaria salvo. Virou para o lado e antes de escorregar definitivamente no sono, teve um pensamento também definitivo: 

— “Se não fosse a polícia, eu matava!” 

O crime 

A firma era próspera e prosperava, apesar do sócio: um belo homem excelente caráter, pai amantíssimo, esposo exemplar, amigo irreprochável foi o mínimo que um orador, à beira do túmulo, disse dele, no dia do enterro: “Colhidos pela brutalidade de tua morte, aqui estamos, Anselmo, para prantearmos o excelente caráter, o pai amantíssimo, o esposo exemplar, o amigo irreprochável que acabamos de perder!”. 

No mesmo cemitério, à beira de outro túmulo, e mais ou menos mesma hora, Ema foi sepultada e chorada quase que solitariamente: quatro coveiros a sepultaram, com suas correntes e más vontades, e o marido chorou, apesar de tudo, segundo afirmaram alguns poucos presentes que ouviram os soluços de um enterro e o discurso do outro. 

À noite, apareceram-lhe em casa alguns amigos compenetrados. Conforme afirmaram mais tarde, foram à casa dele unicamente para que Figueiredo “não fizesse uma besteira”. 

Apesar da presença dos amigos, Figueiredo conteve-se e não cometeu besteira nenhuma. Tomou apenas um porre, como lhe convinha, e disse obscenidades a respeito da vida e de si mesmo, chamando a vida de merda e chamando-se a si mesmo de corno. O que ia de encontro aos pensamentos gerais, embora os amigos protestassem, deixa disso, Figueiredo, deixa disso! 

No dia seguinte ao do enterro, apareceu mal vestido e barbado para iniciar as providências legais das sucessões, pois sucedia ao sócio no controle da firma e sucedia à mulher nos bens do casal que eram muitos, o sogro lhe havia deixado apólices e casas em Vila Isabel. 

Estava rico e livre agora da chatice do sócio e da chatice da mulher. E para ficar livre dos amigos, começou a cultivar mau hálito, o que impedia que os mais importunos se acercassem dele para dar conselhos, principalmente quando, após o escândalo da dupla morte, revelou-se o outro escândalo, o da fortuna que lhe chegava às mãos através de tão rudes eventos. 

Rosnavam que, se não fossem as trágicas e patentes circunstâncias, a polícia deveria investigar melhor aquilo tudo. Mas a suspeita não tinha consistência — apesar do ódio que Figueiredo passou a provocar pela fortuna, pelo mau hálito, e pela liberdade que lhe chegara à vida. Ele mesmo, com o tempo, começou a esquecer, a duvidar do passado, e um dia, vendo no fundo do armário uma peça íntima de Ema, suspirou e sentiu saudades. Logo se aprumou, afugentou o pensamento macabro que lhe surgiu, e embora não houvesse ninguém à volta, disse em voz alta, como convinha a um homem que sofrera tanto: 

— “Aquela cachorra!” 

Porém já cinco anos eram passados da morte da cachorra e do cachorro. Cinco anos daquela tragédia que enlutou a família cristã, rudemente golpeada pelo escândalo daquele pacto de morte. Cronistas sem assunto escreveram sobre o pacto de morte tão romanticamente previsto e executado, foram ouvidas opiniões de sociólogos, de pedagogos e de sacerdotes sobre o caso. Cinco dias depois já ninguém falava no assunto e cinco anos depois, só mesmo ele, e às vezes, pensava em tudo, detalhadamente, como num passo heróico de sua vida. 

Chegara àquela noite em casa, de uma viagem rápida a São Paulo, e baqueara ao entrar em seu quarto: caídos e nus, em cima da cama, a sua mulher e o sócio. Próximo do sócio, o copo partido, cujos resíduos foram examinados pelo Instituto de Criminalística e cuja malignidade foi devidamente provada. 

A perícia, com a ajuda dele, reconstituiu os acontecimentos. Ele viajara a São Paulo, voltaria na noite seguinte. Tão logo se mandou pela estrada, Ema chamara o amante. A perícia examinou a vagina de Ema e encontrou sinais evidentes do coito recente. O imperscrutável aconteceu — e aqui o relatório policial foi respeitoso, ao afirmar que, “após manterem relações de fundo sexual, os dois amantes decidiram pôr fim à vida através de um pacto de morte que foi imediatamente cumprido”. 

Anselmo preparou o veneno, Ema bebeu estoicamente, sem repugnância pela morte ou pelo gosto de amêndoas que saía do copo. E Anselmo, logo em seguida, ingeriu o restante. Contorceram-se pouco, e logo se imobilizaram — e foi assim que, à noite, Figueiredo e mais tarde a polícia os encontraram. 

No 18° Distrito Policial o pacto de morte foi classificado como “Ocorrência nº. 53.697” e arquivado após despacho do delegado-auxiliar, cumpridas as formalidades legais e pagas as taxas do costume. 

O crime e o burguês 

— “Se não fosse a polícia eu matava!”. 

Com essa frase ele adormecera, uma semana antes da tragédia que abalou a sociedade cristã e a sua vida. Viera do teatro e ficara pensando em matar, mas não sabia nem como, nem a quem matar. Não tinha nenhum problema importante na vida, tudo lhe ia bem, e essa inexistência de um problema dava-lhe a sensação de burrice, de imprestabilidade. 

Desde que pensara em matar, sentiu que iniciava uma nova vida, fugia à rotina, à qual sempre se submetera. Era o seu problema, embora não fosse, ainda, a sua vontade. No trabalho, em casa, andando pelas ruas, tinha agora uma ordem fixa de pensamentos e de energias. 

Certa tarde, regressando da cidade, parou no Flamengo. Entrou num prédio, tomou o elevador, fechou os olhos e apertou um botão: qualquer andar em que o elevador parasse, serviria. Parou no sétimo andar. Havia duas portas à frente, apertou a campainha do 701. A velhinha veio abrir e ele quase chegou ao crime: levou as duas mãos para a frente em direção ao gasganete da velha. Mas deu-lhe uma tremedeira nas pernas e ele recuou. O elevador ficara parado no andar e ele pôde fugir. Poderia ter deixado a velha morta, ninguém teria visto nada. Mas deixou a velha apenas surpreendida e irritada. 

Passou uma noite de cão, reprovando-se a covardia. Tivera tudo à mão, a velha, o elevador, não esbarrara com ninguém, nunca entrara naquele prédio. A polícia procuraria pelos parentes da velha, os desafetos, os fornecedores, as ex-empregadas, os vizinhos. Não tivera ao alcance das mãos apenas o gasganete da velha: tivera nas mãos o crime perfeito — e o desperdiçara, sem lucro algum. 

E então tremeu, emocionado e surpreso: acabara de descobrir o crime verdadeiramente perfeito: O LUCRO. Matar sem lucro, como no caso da velha, seria uma brincadeira idiota. Tinha de matar com muito lucro, com tanto lucro que ficasse óbvia a lucrabilidade do crime. E para tornar patente essa lucrabilidade, tinha de escolher uma vítima que fosse patentemente próxima de seus interesses. Viu a mulher dormindo a seu lado. 

— “Se mato esta mulher — a minha mulher — o primeiro e necessário suspeito serei eu mesmo”. 

Riu, com a facilidade do problema. Tão fácil era o problema que resolveu exagerar. Não mataria apenas uma pessoa, mas duas. E, na escala de importância e de lucro, a segunda pessoa que lhe apareceu foi o sócio, o qual hipotecara, há tempos, a parte dele, para levar a mulher aos Estados Unidos, curar um tumor no colo do útero. Ele emprestara o dinheiro e ficara com as hipotecas do sócio. Se matasse o sócio, a firma ficaria inteiramente em suas mãos, era um lucro evidente, agressivo. 

Dois dias depois, avisou à mulher que ia a São Paulo, viagem rápida. Saiu à noite, subiu em direção a Teresópolis. Deixou o carro numa rua que lhe pareceu deserta, tomou um ônibus e antes da meia-noite estava novamente em casa. Entrou pela garagem, como o fazia todas as noites, mas sem o carro, e por causa disso, não teve necessidade de acordar o garagista. 

Surpreendeu a esposa: 

— Uê? Você já voltou? 

— Você está vendo. 

Explicou que o carro enguiçara no quilômetro 97 da Rio — São Paulo, tomara um ônibus, amanhã voltaria ao local, com um mecânico. Foram dormir e ele procurou a mulher. Dessa vez, pela primeira vez em muitos anos, concentrou-se no esforço de fazê-la gozar — era parte do plano. Depois que ela estremeceu e gritou coisas indecentes — sinal que finalmente gozara — ele conseguiu, também, um escasso prazer. Mas logo levou a mão ao peito: 

— Ema, o enfarte! 

Caiu para o lado, olhos arregalados, bufando grosso. Ema deu um pulo da cama, nua. 

— Vou buscar a coramina! 

— Não! Chame o Anselmo, preciso falar com ele, é urgente, mas diga a ele para não contar a ninguém, para vir já! As hipotecas dele! Ele pode perder tudo! 

Ema foi ao telefone, acordou Anselmo: 

— O Figueiredo teve um enfarte. Venha correndo, mas não diga nada a ninguém. As hipotecas! 

A mulher de Anselmo perguntou quem chamava o marido dela àquela hora da noite, mas Anselmo, apesar de esposo exemplar e pai amantíssimo, deu um grito: 

— Vá à merda, mulher. Depois eu explico! 

Ema foi à cozinha, apanhou um copo d’água. Quando voltou ao quarto, pingando gotas de coramina no copo, encontrou o marido em pé, com um copo na mão. 

— Uê? Já ficou bom? 

Figueiredo avançou para ela. 

— Beba isso! 

— Mas… 

— Beba, sua idiota! 

Era a primeira vez, em dezenove anos de casados, que se dava o nome ao boi naquela casa. Ema apanhou o copo, sentiu um cheiro estranho. Bebeu um gole e ainda teve tempo de perguntar: 

— Para que é isso? 

— É um afrodisíaco. Faz a gente gozar mais ainda. 

Mas Ema não ouviu que ia gozar mais ainda. Caiu próximo à cama e Figueiredo arrumou-a o melhor que pôde. Mais alguns minutos, foi à porta da frente, esperar pelo sócio. Viu o elevador subir, a luzinha crescendo, crescendo. Anselmo saiu do elevador e deu com ele na porta. 

— E o enfarte? 

— Entre depressa! 

Anselmo não gostou. A mulher dele ia falar o resto da vida contra aquela saída abrupta, misteriosa, ia ser o diabo explicar. 

— Brincadeira tem hora! Cadê o enfarte? 

Figueiredo estendeu-lhe o copo. 

— Prove essa droga! Veja que gosto tem e se concorda comigo. 

Anselmo provou, sentiu um gosto adocicado de amêndoas, mas não teve tempo de concordar. Figueiredo arrastou-o ao quarto, tirou-lhe a roupa, deitou-o ao lado de Ema, a mão estendida para fora do leito. Pegou no copo, colocou-o na mão de Anselmo, deixou que o copo se partisse no chão. 

Apagou as luzes, deixando apenas um pequeno abajur aceso. Ganhou a rua, atravessando a garagem do prédio, o garagista tinha sono de pedra, quando chegava tarde, com o carro, tinha de esmurrar a campainha para que o homem lhe abrisse a porta dos carros. 

Andou pela cidade, esperando o primeiro ônibus para Teresópolis. Deixara impressões no copo, nas roupas, em todos os lugares. Mas o lucro era tão dele que invalidava a suspeita. Deixara atrás de si um crime que se explicava por si mesmo. 

Tomou o ônibus para Teresópolis. Com o sereno da noite, o carro ficara melado como um bicho. Antes de ligar o motor, abriu o painel de instrumentos e desligou o cabo do velocímetro. Desceu a serra, almoçou um frango assado à beira da estrada, atingiu a Avenida Brasil e cortou em direção oposta à cidade. Andou mais alguns quilômetros e pegou a Rio — São Paulo. Enfrentou as retas iniciais, atingiu a serra mas logo fez um contorno e embicou de volta ao Rio. Parou no posto de gasolina para abastecer o carro. 

— Tem mecânico aí? 

O mulato de maus dentes surgiu das entranhas de uma camioneta. 

— É o cabo do velocímetro. Acho que houve alguma coisa com ele. 

Deu boa gorjeta ao mecânico e ao homem do posto que lhe enchera o tanque, 

tinha agora duas pessoas que atestariam que ele regressava de São Paulo. 

Quando arrancou, os dois homens o chamaram de doutor: 

— Boa viagem, doutor! 

Chegou em casa, após uma boa viagem, e viu o quadro que logo os policiais examinaram, os jornais noticiaram e com o qual ele lucrou. 

Moral 
O crime, para o burguês, só não compensa quando a polícia está contra. 

O texto acima foi publicado no livro “Babilônia, Babilônia”, Ed. Civilização Brasileira — Rio de Janeiro, 1978, e está entre “Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Século”, uma seleção de Ítalo Moriconi para a Objetiva — Rio de Janeiro, 2000, pág. 270.

Clássicos  carlos-h-cony O burguês e o crime – Conto de Carlos Heitor Cony

sobre o autor

Carlos Heitor Cony nasceu no Rio de Janeiro em 1926, fez humanidades e curso de filosofia no Seminário de São José. Estreou na literatura ganhando por duas vezes consecutivas o Prêmio Manuel Antônio de Almeida (em 1957 e 1958) com os romances A Verdade de Cada Diae Tijolo de Segurança. Trabalhou na imprensa desde 1952, inicialmente no Jornal do Brasil, mais tarde no Correio da Manhã, do qual foi redator, cronista e editor. Depois de várias prisões políticas durante a ditadura militar e de um período no exterior, entrou para o grupo Manchete, no qual lançou a revista Ele e Ela e dirigiu as revistas Desfile e Fatos&Fotos. Foi colunista da Folha de S. Paulo e comentarista da rádio CBN. Eleito para a Academia Brasileira de Letras em 2000, recebeu, entre outros, os prêmios: Machado de Assis, da ABL, pelo conjunto da obra, em 1996; Jabuti de 1996, da Câmara Brasileira do Livro, pelo romance Quase Memória; Nacional Nestlé de Literatura de 1997, pelo romance O Piano e a Orquestra; Jabuti de 1997, pelo romance A Casa do Poeta Trágico; Jabuti 2000, concedido ao Romance sem Palavras. Em 1998, o governo francês, no Salão do Livro, em Paris, condecorou-o com a L’Ordre des Arts et des Lettres. Cony faleceu em 5 de janeiro de 2018.