A grande oportunidade para testar a sua disciplina interior foi ao guardar o carro na garagem. Todas as vezes tinha de pedir à mulher que suspendesse o vidro da porta:
— Suspenda o seu vidro, Ema.
Àquela noite, engoliu em seco e esperou que a mulher saísse para, então inclinar-se no banco, com algum esforço para sua espinha já bombardeado por sedimentações calcáreas que prenunciavam um respeitável bico-de-papagaio, e rodar a manivelinha até fechar o vidro.
Na cama, preparado para dormir, a palavra primeiramente, e o conceito depois, retornaram à sua cabeça e às suas preocupações: matar. Há muito não tinha insônia. A firma prosperava, vendia material de escritório aos ministérios militares, era pago em dia, e não faltavam encomendas, tanto Marinha como o Exército e a Aeronáutica — felizmente para ele e para Pátria — gastavam mais em papel timbrado do que em pólvora.
Geralmente, caía duro em cima da cama. De quinze em quinze dias ou de vinte em vinte dias, procurava a mulher para um amor apressado e quase sempre incompleto da parte dela.
Quando percebeu as horas, viu que gastara a noite toda pensando. Tinha disciplina interior feroz e eficiente. Se dormisse até as 9, estaria salvo. Virou para o lado e antes de escorregar definitivamente no sono, teve um pensamento também definitivo:
— “Se não fosse a polícia, eu matava!”
O crime
A firma era próspera e prosperava, apesar do sócio: um belo homem excelente caráter, pai amantíssimo, esposo exemplar, amigo irreprochável foi o mínimo que um orador, à beira do túmulo, disse dele, no dia do enterro: “Colhidos pela brutalidade de tua morte, aqui estamos, Anselmo, para prantearmos o excelente caráter, o pai amantíssimo, o esposo exemplar, o amigo irreprochável que acabamos de perder!”.
No mesmo cemitério, à beira de outro túmulo, e mais ou menos mesma hora, Ema foi sepultada e chorada quase que solitariamente: quatro coveiros a sepultaram, com suas correntes e más vontades, e o marido chorou, apesar de tudo, segundo afirmaram alguns poucos presentes que ouviram os soluços de um enterro e o discurso do outro.
À noite, apareceram-lhe em casa alguns amigos compenetrados. Conforme afirmaram mais tarde, foram à casa dele unicamente para que Figueiredo “não fizesse uma besteira”.
Apesar da presença dos amigos, Figueiredo conteve-se e não cometeu besteira nenhuma. Tomou apenas um porre, como lhe convinha, e disse obscenidades a respeito da vida e de si mesmo, chamando a vida de merda e chamando-se a si mesmo de corno. O que ia de encontro aos pensamentos gerais, embora os amigos protestassem, deixa disso, Figueiredo, deixa disso!
No dia seguinte ao do enterro, apareceu mal vestido e barbado para iniciar as providências legais das sucessões, pois sucedia ao sócio no controle da firma e sucedia à mulher nos bens do casal que eram muitos, o sogro lhe havia deixado apólices e casas em Vila Isabel.
Estava rico e livre agora da chatice do sócio e da chatice da mulher. E para ficar livre dos amigos, começou a cultivar mau hálito, o que impedia que os mais importunos se acercassem dele para dar conselhos, principalmente quando, após o escândalo da dupla morte, revelou-se o outro escândalo, o da fortuna que lhe chegava às mãos através de tão rudes eventos.
Rosnavam que, se não fossem as trágicas e patentes circunstâncias, a polícia deveria investigar melhor aquilo tudo. Mas a suspeita não tinha consistência — apesar do ódio que Figueiredo passou a provocar pela fortuna, pelo mau hálito, e pela liberdade que lhe chegara à vida. Ele mesmo, com o tempo, começou a esquecer, a duvidar do passado, e um dia, vendo no fundo do armário uma peça íntima de Ema, suspirou e sentiu saudades. Logo se aprumou, afugentou o pensamento macabro que lhe surgiu, e embora não houvesse ninguém à volta, disse em voz alta, como convinha a um homem que sofrera tanto:
— “Aquela cachorra!”
Porém já cinco anos eram passados da morte da cachorra e do cachorro. Cinco anos daquela tragédia que enlutou a família cristã, rudemente golpeada pelo escândalo daquele pacto de morte. Cronistas sem assunto escreveram sobre o pacto de morte tão romanticamente previsto e executado, foram ouvidas opiniões de sociólogos, de pedagogos e de sacerdotes sobre o caso. Cinco dias depois já ninguém falava no assunto e cinco anos depois, só mesmo ele, e às vezes, pensava em tudo, detalhadamente, como num passo heróico de sua vida.
Chegara àquela noite em casa, de uma viagem rápida a São Paulo, e baqueara ao entrar em seu quarto: caídos e nus, em cima da cama, a sua mulher e o sócio. Próximo do sócio, o copo partido, cujos resíduos foram examinados pelo Instituto de Criminalística e cuja malignidade foi devidamente provada.
A perícia, com a ajuda dele, reconstituiu os acontecimentos. Ele viajara a São Paulo, voltaria na noite seguinte. Tão logo se mandou pela estrada, Ema chamara o amante. A perícia examinou a vagina de Ema e encontrou sinais evidentes do coito recente. O imperscrutável aconteceu — e aqui o relatório policial foi respeitoso, ao afirmar que, “após manterem relações de fundo sexual, os dois amantes decidiram pôr fim à vida através de um pacto de morte que foi imediatamente cumprido”.
Anselmo preparou o veneno, Ema bebeu estoicamente, sem repugnância pela morte ou pelo gosto de amêndoas que saía do copo. E Anselmo, logo em seguida, ingeriu o restante. Contorceram-se pouco, e logo se imobilizaram — e foi assim que, à noite, Figueiredo e mais tarde a polícia os encontraram.
No 18° Distrito Policial o pacto de morte foi classificado como “Ocorrência nº. 53.697” e arquivado após despacho do delegado-auxiliar, cumpridas as formalidades legais e pagas as taxas do costume.
O crime e o burguês
— “Se não fosse a polícia eu matava!”.
Com essa frase ele adormecera, uma semana antes da tragédia que abalou a sociedade cristã e a sua vida. Viera do teatro e ficara pensando em matar, mas não sabia nem como, nem a quem matar. Não tinha nenhum problema importante na vida, tudo lhe ia bem, e essa inexistência de um problema dava-lhe a sensação de burrice, de imprestabilidade.
Desde que pensara em matar, sentiu que iniciava uma nova vida, fugia à rotina, à qual sempre se submetera. Era o seu problema, embora não fosse, ainda, a sua vontade. No trabalho, em casa, andando pelas ruas, tinha agora uma ordem fixa de pensamentos e de energias.