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O Diabo que assoviava, de João Ubaldo Ribeiro

O Diabo que assoviava , conto de João Ubaldo Ribeiro

João Ubaldo Ribeiro foi escritor baiano de Itaparica, vencedor do Premio Camões em 2008 e autor de conhecidos romances e contos. Consagrado como um marco do  romance brasileiro pelo livro Sargento Getúlio, seus escritos são temperados com a cultura e os costumes do Nordeste brasileiro e, em particular, dos sergipanos. 

O Diabo que Assoviava

João Ubaldo Ribeiro 

O problema com essas histórias todas é que é tudo offzirrécorde, como se diz atualmente. Quer dizer, quem diz não escreve e quem escreve não assina. Não tolero isso. Pode estar muito na moda, mas não me convence. Eu, você pode escrever aí: foi eu que disse. O resto de quem sabe, não querendo confirmar, não confirme. Escreva aí, sem o offzirrécorde. O camarada tem medo de dizerem que ele é colhudeiro, a verdade é o sol e ele é a lua, essas coisas. Comigo não, escreva. O diabo Beremoalbo, muitas pessoas estiveram pessoalmente com ele – posso citar diversas, aliás não cito nada, hoje em dia o sujeito cita e, quando está bem do seu, já virou alcaguete, pode deixar – o diabo Beremoalbo era um diabão altamente escroto, dos piores que já apareceram por aqui, inclusive fazia as desgraças dele e dava grandes gaitadas, espécie de curriúque-curriúque, só que com aquele bafo de diabo, absolutamente diferentíssimo. Ele chegava na porta das pessoas explodindo fortemente as letras que movimentam os beiços:

— Boa noite. Meu nome é Beremoalbo.

E aí podia se resignar, que seguia uma escrotidão em cima da outra, encarreirado. Leite azedando, mulher abortando, menino de caganeira, boi de bicheira, água podre no purrão, panarício no dedão, moça velha desonrada, casa nova destelhada, tudo o que possa lhe ocorrer. O bicho tinha uma voz péssima, mestiça de gruta, uma coisa horrível de se ouvir assim no meio da noite — meu nome é Beremoalbo —, imagine o senhor. Pessoas há que procuram achar qualidades nesse diabo Beremoalbo, mas a verdade precisa ser dita, porque não existe coisa ruim neste mundo que não apareça algum descarado para elogiar: nesse Beremoalbo não tem nada que se salve, não se pode ter a mínima confiança nele. Para não dizer mais nada, recordo o dia em que seu Beremoalbo se nos aparece por meio do serviço de alto-falantes. O que ele diz é o seguinte:

— Boa noite. Ao microfone, Beremoalbo. Votem no Medebê.

Agora o senhor veja que conselho porreta que ele achou de dar. Interessante. Com certeza é a mãe dele, se diabo tivesse mãe, que vai ficar aqui aguardando quatro anos sem nem o secretário da Justiça, que é o mais esculhambado de todos, aparecer por aqui, mordamos aqui para vermos se sairmos leite, ora me deixe. Acredito ser isto suficiente para saber de quem se trata Beremoalbo.

Entretanto, Beremoalbo está longe de ser o único da raça do cão a frequentar por aqui, aliás, é exatamente de um caso desses que eu quero tratar, mais tarde lhe falo, logo, logo. Tem gente que nega, mas, quando o senhor virar as costas, vão se benzer e espalhar alho pelos cantos da casa, só que Beremoalbo come alho, com ele o negócio é difícil. Tem gente que nega, mas só de fingimento, pois a verdade é que esse pessoal todo vai se lembrar se o senhor chegar para eles e mencionar alguns dos seguintes cães: Balganoel, o espalha-merda; Virifinário, o que conseguiu fazer aparecer mais cornos nesta terra do que se pode contar; o diabão Jugurta, que convencia todo mundo a dizer a verdade e assim causou toda apresentação de fatos maus que a gente seria feliz se não soubesse; Harpagelão, que meteu na cabeça de diversos padres de ir na terra de uns índios mais do que degenerados, os quais comeram Roquiféler – uns índios que comeram Roquiféler, vai se brincar com um povo desses? – e igualmente que os índios comeram os padres e nem pensaram duas vezes, que quando índio pensa meia vez pensa muito; Rolvinésio, o que botava para falar e, botando gente para falar, causou grande número de misérias; Erundino, que peidava nos ambientes e provocava inimizades; Raimundo Humberto, dador de bofetadas estraladas, levantador de saias de mulheres, assoprador de ventos maus de toda consequência, causador de dor de ouvidos, mandador de moscas na hora do sono, broxador de amantes, atiçador de crianças insuportáveis e tudo mais que faça nós o Homem que possamos dirigir blasfêmias ao Nosso Criador – mas esse Raimundo Humberto, o senhor tem de concordar que um diabo chamado Raimundo Humberto nunca que pode ser a mesma coisa de um diabo atendendo por Beremoalbo, então seu Raimundo Humberto se fazia passar, a quantos coubesse a desgraça de topar com ele, por Ascaltenor, mas esse já é outro diabo, que não atenta aqui.

Pode o senhor assim consultar a nossa praça e perceber o que quiser. Porque cada um percebe o que quer, apesar de todo o offzirrécorde. Embora não perceber certas coisas já pareça descaração, mas manda a caridade que se deixe isso de lado. Nunca me esqueço de que uns americanos estiveram aqui e filmaram o povo todo – sem porém pagar um tostão a ninguém, como eles pagam por exemplo a Tarzan, claro que ninguém aqui é Tarzan, mas também é filhos de Deus – e, quando notaram que a maior parte só trabalha quando está com fome, disseram que todo mundo aqui somos uma sociedade rica. E ainda sustentaram e botaram na rádio. Quer dizer, quanto mais a gente estiver morando no oco dos pés de pau e cagando nos matos, mais eles estão gostando. Americano é mais sabido até do que paulista. Estamos de olho neles todos. O diabo Gildélio, conforme o senhor sabe, do contrário não estava perguntando a respeito dele, era mais especial do que esses outros, isto porque, de acordo com todas as testemunhas, trazia sempre franzido o sobrolho e a cara ensombreada, por isso que não suportava ser diabo. Se bem que nessa eu não creio assim cem por cento, porque cansei de ver ele sair da bodega de Ernestino com cada lasca de jabá deste tamanho na mão, que ele roubava, provocando com isso peixeiradas e tentativas de Ernestino contra qualquer pessoa que apresentasse cara de haver comido jabá naqueles dias, notadamente jabá crua. Eu mesmo estive acusado falsamente. Quer dizer, são umas coisas que fazem a pessoa alimentar certas dúvidas.

No entanto, de relação aos assovios, posso muitíssimo bem prestar depoimento, isto porque todos nesta cidade sabem que um certo tipo de assovio, antes muito ouvido por aqui, podia contar como uma espécie de aviso, porque lá vinha miséria. Acúrcio mesmo, depois que ele já tinha metido no juízo de Acúrcio casar com Isabel Rosália e morar com a mãe lá dela, dona Aurora, que só não se podia chamar de jararaca porque a jararaca tem a natureza mais cortês. Por aí o senhor tira a natureza de dona Aurora. Pois Acúrcio garante que, na hora do pedido de casamento, ele ouviu aquele assoviozinho como que de curió, assim no pé do ouvido bem lá dele. A consciência cochichou: atenção nos assobeios, que possa ser Gildélio. Mas aí é que está o particularismo da situação. Na hora, o sujeito não dá importância ao assovio, de forma que a desgraça fica feita. A mesma coisa pode ser dita dúzias e dúzias de vezes, como no caso de Genival, esse mesmo que o senhor está pensando, que vem ouvindo esses assovios toda vez que se candidata, desde vereador aqui até prefeito, deputado, vai a senador — quer dizer, chegando em todas as alturas políticas, não tem quem salve ele do inferno. Como no caso de Totonho, para mim ele continua a ser Totonho, lá fora é que chamam de doutor, doutor para mim é ourinol, não vou chamar de doutor um moleque daquele, que eu vi o pai muitas vezes passando cabresto em jegue alheio nos pastos, ora me deixe. O caso dele é que hoje, de grau em grau, é dono de altos bancos e altíssimas fábricas e é empregador — que ele chama empregador e não gosta que chamem de patrão, por causa do natural acanhamento — de diversas pessoas, porém sempre ele ouvindo o assovio de Gildélio, quanto mais dinheiro ele vai ganhando. Tem uns dinheiros de viúvas que ele também arrecada e escreve numa caderneta e esses incrementam muitíssimo a assoviação. Deixe ele. 

Fala-se em Gildélio também, quando, por uma razão ou por outra, a pessoa se engana com alguém e pega esse alguém com a boca na botija em alguma desgraceira contra si, isto porque, segundo se diz, seu Gildélio me comete as piores safadezas por entre os disfarces mais descarados e as mais altas finuras. O sujeito pega ele armando uma sacanagem e ele faz o seguinte discurso: 

— Creia, meu senhor, neste mundo é muito fácil condenar e ainda mais fácil ignorar. O senhor me compreenda, eu sou diabo, é uma fatalidade, o que é que se pode fazer? Alguém tem que ser diabo, havemos de convir. Vamos compreender. Não se condena pela profissão, sem conhecer o caráter. Se eu fosse anjo, está certo. Mas eu não sou. De forma que só posso fazer esse tipo de coisa, o senhor por fineza queira relevar. Posso garantir que, se o senhor fosse diabo, estava na mesma situação, firuri-firuri. 

Bom consolo, pode o senhor dizer e, de fato, nada disso ia impedir que a desgraceira fosse feita. Pelo contrário, acho que nisso vai a demonstração de que Gildélio pode ser o exemplo de todos os diabos, pois devia ser verdade conhecida que nenhum assovio ou até apito de trem vai desviar o homem de seu mau destino. De maneira que podemos considerar esses assovios na qualidade de deboche, mesmo porque a situação aqui é de molde que, se o urubu de baixo está cagando no de cima, isso se descreve como boas notícias. É assim que vemos as coisas pretas, Deus é grande. Aliás, podia chegar uma banda de assoviadores que nada se alterava, pois desde que este mundo é mundo que existe um assoviador, sem que ninguém devote a ele preocupação, porventura senão um maestro ou outro, para lhe comunicar que o seu dó maior enganchou no si bemol. 

Não sei de nada, até nem sou daqui e, mesmo que fosse, não estava aqui e, mesmo que estivesse, não falava nada. Estou ficando nos paraxismos, a culpa é sua, que me deu álcool. Estou sabendo apenas que esse diabo tanto atanazou a vida do meu compadre Tito Procópio que esse compadre, ouvindo embora os assovios, fez mais filhos do que devia a consciência consentir, pois afirmava Tito Procópio que o filho era a riqueza do pobre, convencimento este assoprado pelo Gildélio mencionado. Sendo que Gildélio, que tinha se provado amigo da família, tudo bem disfarçadinho, mostrou que não ter filhos ia ser bem pior. Além de ser maldição, exibia aos vizinhos gala fraca ou mulher maninha e, mais do que importante, podia ser – estou dizendo assim: sempre podia ser, às vezes possa ser até que não podia ser, que eu não sou comunista – podia ser que, sem mais gente para ajudar na produção, podia ser que eles não pudessem mais ficar ali, naquelas terras que não eram deles. Considerado isso, lembre que tanto faz nascer como não nascer, que a comida não aumenta, mas a produção pode aumentar. E tal e coisa. E só os assovios. Pois então Tito Procópio foi tendo filhos, juntamente com despesas de enterros diversos, muito embora tenha feito muitos que viviam ali mesmo, comendo o barrinho deles e esfregando as barriguinhas d’água deles e dois ou três quem sabe se não pode vir a ser até peão, se forte? 

Terminou, naturalmente, que Tito Procópio desmascarou Gildélio e se preparou para envergonhar esse diabo, quando ele então começou com a história de que culpa ele tinha se ele era diabo. Mas logo eu, disse Tito Procópio, logo eu, que sou pobre e nada possuo nesse mundo? Podendo vosmecê ir infernar quem por aí explora e torpedeia? 

É por isso mesmo, disse o diabo Gildélio, olhando para os meninos amarelos com seus olhos maus e dando um sorriso horrível como só o diabo pode dar, o sorriso mais feio do mundo. E ele sorri porque sabe que não pode obrar coisa pior do que fazer nascer. Pelo menos nascer por aqui. 

Sobre o autor

João Ubaldo (Osório Pimentel) Ribeiro nasceu em Itaparica (BA), em 23 de janeiro de 1941. Dos primeiros meses de idade até cerca de onze anos, viveu com sua família em Sergipe, onde o pai era professor e político. A formação literária de João Ubaldo Ribeiro iniciou ainda nos primeiros anos de estudante. Foi um dos jovens escritores brasileiros que participaram do International Writing Program da Universidade de Iowa. Trabalhando na imprensa, pôde também escrever seus livros de ficção e construir uma carreira que o consagrou como romancista, cronista, jornalista e tradutor 

Seus primeiros trabalhos literários foram publicados em diversas coletâneas (Reunião, Panorama do Conto Baiano). Aos 21 anos de idade, escreveu seu primeiro livro, Setembro não Tem Sentido, que ele desejava batizar como A Semana da Pátria, contra a opinião do editor. O segundo foi Sargento Getúlio, de 1971. Em 1974, publicou Vencecavalo e o Outro Povo, que por sua vontade se chamaria A Guerra dos Paranaguás. 

Consagrado como um marco do moderno romance brasileiro, Sargento Getúlio filiou o seu autor, segundo a crítica, a uma vertente literária que sintetiza o melhor de Graciliano Ramos e o melhor de Guimarães Rosa. A história é temperada com a cultura e os costumes do Nordeste brasileiro e, em particular, dos sergipanos. Esse regionalismo extremamente rico e fiel dificultou a versão do romance para o inglês, obrigando o próprio autor a fazer esse trabalho. A seu respeito pronunciaram-se, nos Estados Unidos e na França, as colunas literárias de todos os grandes jornais e revistas. 

Em 1999, foi um dos escritores escolhidos em todo o mundo para dar depoimento, ao jornal francês Libération, sobre o Terceiro Milênio. Viva o Povo Brasileiro foi o tema do exame de Agrégation, concurso para detentores de diploma de graduação na universidade francesa. Este romance e Sargento Getúlio constaram da maior parte das listas dos cem melhores romances brasileiros do século. 

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