Para ele, o escritor é aquele homem que se propõe novos desafios, superando, através do trabalho com a palavra, aquilo que pensava e sentia numa contínua e meditada transformação de si mesmo e do mundo em volta. Indomável e determinado a deixar sua marca na literatura brasileira, Osman possui uma extensa obra, onde reinventou o foco narrativo com originalidade.
O vitral, conto de Osman Lins
Osman Lins foi contista, romancista e escreveu para dramaturgia. Este conto integra a seleção de Ítalo Morriconi como um dos cem melhores contos brasileiros do século. Curiosamente, o episódio do vitral aconteceu na casa de Wlademir Dias-Pino, no bairro Catete, no Rio de Janeiro.
O vitral
Desde muito, ela sabia que o aniversário, este ano, seria num domingo. Mas só quando faltavam quatro ou seis semanas, começara a ver na coincidência uma promessa de alegrias incomuns e convidara o esposo a tirarem um retrato. Acreditava que este haveria de apreender seu júbilo, do mesmo modo que o da Primeira Comunhão retivera para sempre os cânticos.
– Ora… Temos tantos… – respondera o homem. Se tivéssemos filhos… Aí, bem. Mas nós dois! Para que retratos? Dois velhos!
A mão esquerda, erguida, com o indicador e o médio afastados, parecia fazer da solidão uma coisa tangível – e ela se reconhecera com tristeza no dedo menor, mais fino e recurvo. Prendera grampos aos cabelos negros, lisos, partidos ao meio, e levantara-se.
– Está bem. Você não quer…
(A voz nasalada, contida, era um velho sinal de desgosto.)
– Suas tolices, Matilde… Quando é isso?
Como se a ideia a envergonhasse, ela inclinara a cabeça:
– Em setembro – dissera. No dia vinte e quatro. Cai num domingo e eu…
– Ah! Uma comemoração – interrompera o esposo. Vinte anos de casamento… Um retrato ameno e primaveril. Como nós.
Na véspera do aniversário, ao deitar-se, ela ainda lembrara essas palavras; mas purificara-se da ironia e a repetira em segredo, sentindo-se reconduzida ao estado de espírito que lhe advinha na infância, em noites semelhantes: um oscilar entre a espera de alegrias e o receio de não as obter.
Agora, ali estava o domingo, claro e tépido, mas não com as alegrias sonhadas, sem o que tudo mais se tornara inexpressivo.
– Se você não quiser, eu não faço questão do retrato – disse ela. Foi tolice.
– O fotógrafo já deve estar esperando. Por que não muda o penteado? Ainda há tempo.
– Não. Vou assim mesmo.
Abriu a porta, saíram. Flutuavam nas raras nuvens brancas, as folhas das aglaias tinham um brilho seco. Ela deu o braço ao marido e sentiu, com espanto, uma anunciação de alegrias no ar, como se algo em seu íntimo aguardasse aquele gesto.
Seguiram. Soprou um vento brusco, uma janela se abriu, o sol flamejou nos vidros. Uma voz forte de mulher principiou a cantar, extinguiu-se, a música de um acordeão despontou indecisa, cresceu. E quando o sino da Matriz começou a vibrar, com uma paz inabalável e sóbria, ela verificou, exultante, que o retrato não ficaria vazio: a insubstancial riqueza daqueles minutos o animaria para sempre.
– Manhã linda! – murmurou. Hoje eu queria ser menina.
– Você é.
A afirmativa podia ser uma censura, mas foi como um descobrimento que Matilde a aceitou. Seu coração bateu forte, ela sentiu-se capaz de rir muito, de extensas caminhadas, e lamentou que o marido, circunspecto, mudo, estivesse alheio à sua exultação. Guardaria, assim, através dos anos, uma alegria solitária, da qual Antônio para sempre estaria ausente.
Mas quem poderia assegurar, refletiu, que ele era, n~´ao um participante de seu júbilo, mas a causa mesmo de tudo que naquele instante sentia; e que, sem ele, o mundo e suas belezas não teriam sentido?
Estas perguntas tinham o peso de afirmativas e ela exclamou que se sentia feliz.
– Aproveite – aconselhou ele. Isso passa.
– Passa. Mas qualquer coisa disto ficará no retrato. Eu sei.
As duas sombras, juntas, resvalavam no muro e na calçada, sobre a qual ressoavam seus passos.
– Não é possível guardar a mínima alegria – disse ele. Em coisa alguma. Nenhum vitral retém a claridade.
Cinco meninas apareceram na esquina, os vestidos de cambraia parecendo-lhes comunicar sua leveza, ruidosas, perseguindo-se, entregues à rua, abriram um portão, desapareceram.
Ela apertou o braço do marido e sorriu, a sentir que um júbilo quase angustioso jorrava de seu íntimo. Compreendera que tudo aquilo era inapreensível: enganara-se ou subestimara o instante ao julgar que poderia guardá-lo. “Que este momento me possua, me ilumine e desapareça – pensava. Eu o vivi. Eu o estou vivendo”.
Sentia que a luz do sol a trespassava, como um vitral.
*Conto de Osman Lins publicado no livro “Os cem melhores contos brasileiros do século” (Editora Objetiva), seleção de Italo Morriconi.
SOBRE O AUTOR
Pernambucano, Osman Lins nasceu em Vitória de Santo Antão e foi autor de contos, romances, narrativas, livro de viagens e peças de teatro.
Aos 16 anos de idade mudou-se para o Recife, onde ingressou no curso de finanças. Nesta época começou a trabalhar no Banco do Brasil. Posteriormente estudou dramaturgia na Universidade do Recife.Em fins dos anos 1940, Osman Lins casou-se com Maria do Carmo, com quem teria três filhas. Em 1950 ganhou um concurso literário com o conto “O Eco”, mas sua estreia na ficção se deu com a publicação de seu primeiro romance, “O Visitante”, em 1955. Dois anos depois publicou “Os Gestos” e em seguida “O Fiel e a Pedra”.
Sua primeira peça teatral a ser encenada foi “Lisbela e o prisioneiro”, adaptada com sucesso para o cinema em 2003. No início dos anos 1960, Osman Lins viveu na Europa, como bolsista da Aliança Francesa. De volta ao Brasil, transferiu-se para São Paulo.
Em 1970 tornou-se professor universitário, ensinando literatura brasileira. Obteve também o grau de doutor em Letras, com uma tese sobre o escritor Lima Barreto. Em 1973 Lins publicou o enigmático romance “Avalovara“, considerado uma de suas principais obras e traduzido para diversas línguas.
O projeto literário de Osman Lins mescla-se com sua biografia e fatos que marcaram sua história pessoal aparecem de maneira recorrente em sua obra.