Osman Lins, o talento de um espírito indômito

 Para ele, o escritor é aquele homem que se propõe novos desafios, superando, através do trabalho com a palavra, aquilo que pensava e sentia numa contínua e meditada transformação de si mesmo e do mundo em volta. Indomável e determinado a deixar sua marca na literatura brasileira, Osman possui uma extensa obra, onde reinventou o foco narrativo com originalidade. 

"O escritor não é um homem destinado a evadir-se do mundo, e sim a mergulhar profundamente no mundo. Tem-se dificuldade em perceber que ele não é um ser feito de sonhos, incapaz de encarar decididamente a vida, mas exatamente o contrário: laboriosamente, através do exercício com as palavras, ele aprende a ver.”

Osman da Costa Lins nasceu em Vitória de Santo Antão, Pernambuco em 1924. 

Seu pai era alfaiate e a mãe, jovem de dezoito anos, falecera logo após seu nascimento.  

Passa a infância em sua cidade natal até os 16 anos, após terminar o secundário. Ingressa no curso de finanças na Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade do Recife, graduando-se em 1946. 

Ainda nessa época, começa a trabalhar no Banco do Brasil. Inicia em 1952 a redação de O Visitante, seu romance de estreia, publicado em 1955.  

Colabora no Diário de Pernambuco e, em 1960, conclui curso de dramaturgia na Escola de Belas-Artes da mesma universidade e, no ano seguinte, vai à Europa como bolsista da Aliança Francesa.  

De volta ao Brasil, muda-se, em 1962, para São Paulo.  

Em 1970, torna-se professor de literatura brasileira na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Marília, São Paulo, instituição em que também defende seu doutorado, com tese sobre Lima Barreto (1881 – 1922).  

Desencantado com o ensino brasileiro, pede exoneração da faculdade em 1976, quando passa a se dedicar com exclusividade à literatura. A partir de então, colabora na imprensa, em veículos como o Suplemento Literário de O Estado de S. Paulo, e escreve roteiros para a televisão. 

Escreve Do Ideal e da Glória. Problemas Inculturais Brasileiros em 1977, tendo já publicado seus dois mais importantes livros, Nove, Novena (1966) e o experimental Avalovara (1973). 

Faleceu em São Paulo em1978.  

Seus romances e contos ajudaram a configurar com muito arrojo a moderna e contemporânea ficção brasileira, ao lado de Clarice Lispector, Guimarães Rosa entre outros. Sua trajetória pode ser traduzida num desejo crescente e imperativo de ampliação do próprio conhecimento e de constantes desafios auto-impostos à sua sensibilidade de escritor ousado.  

Para ele, o escritor é aquele homem que se propõe novos desafios, superando, através do trabalho com a palavra, aquilo que pensava e sentia numa contínua e meditada transformação de si mesmo e do mundo em volta. 

Depoimento de Carlos Felipe Moisés sobre o período em que conviveu com Osman Lins durante os anos 1960 e 1970.

A Partida

Hoje, revendo minhas atitudes quando vim embora, reconheço que mudei bastante. Verifico também que estava aflito e que havia um fundo de mágoa ou desespero em minha impaciência. Eu queria deixar minha casa, minha avó e seus cuidados. Estava farto de chegar a horas certas, de ouvir reclamações; de ser vigiado, contemplado, querido. Sim, também a afeição de minha avó incomodava-me. Era quase palpável, quase como um objeto, uma túnica, um paletó justo que eu não pudesse despir. 

Ela vivia a comprar-me remédios, a censurar minha falta de modos, a olhar-me, a repetir conselhos que eu já sabia de cor. Era boa demais, intoleravelmente boa e amorosa e justa. 
Na véspera da viagem, enquanto eu a ajudava a arrumar as coisas na maleta, pensava que no dia seguinte estaria livre e imaginava o amplo mundo no qual iria desafogar-me: passeios, domingos sem missa, trabalho em vez de livros, mulheres nas praias, caras novas. Como tudo era fascinante! Que viesse logo. Que as horas corressem e eu me encontrasse imediatamente na posse de todos esses bens que me aguardavam. Que as horas voassem, voassem! 

Percebi que minha avó não me olhava. A princípio, achei inexplicável ela fizesse isso, pois costumava fitar-me, longamente, com uma ternura que incomodava. Tive raiva do que me parecia um capricho e, como represália, fui para a cama. 

Deixei a luz acesa. Sentia não sei que prazer em contar as vigas do teto, em olhar para a lâmpada. Desejava que nenhuma dessas coisas me afetasse e irritava-me por começar a entender que não conseguiria afastar-me delas sem emoção. 

Minha avó fechara a maleta e agora se movia, devagar, calada, fiel ao seu hábito de fazer arrumações tardias. A quietude da casa parecia triste e ficava mais nítida com os poucos ruídos aos quais me fixava: manso arrastar de chinelos, cuidadoso abrir e lento fechar de gavetas, o tique-taque do relógio, tilintar de talheres, de xícaras. 

Por fim, ela veio ao meu quarto, curvou-se: 

— Acordado? 

Apanhou o lençol e ia cobrir-me (gostava disto, ainda hoje o faz quando a visito); mas pretextei calor, beijei sua mão enrugada e, antes que ela saísse, dei-lhe as costas. 
Não consegui dormir. Continuava preso a outros rumores. E quando estes se esvaíam, indistintas imagens me acossavam. Edifícios imensos, opressivos, barulho de trens, luzes, tudo a afligir-me, persistente, desagradável — imagens de febre. 

Sentei-me na cama, as têmporas batendo, o coração inchado, retendo uma alegria dolorosa, que mais parecia um anúncio de morte. As horas passavam, cantavam grilos, minha avó tossia e voltava-se no leito, as molas duras rangiam ao peso de seu corpo. A tosse passou, emudeceram as molas; ficaram só os grilos e os relógios. Deitei-me. 

Passava de meia-noite quando a velha cama gemeu: minha avó levantava-se. Abriu de leve a porta de seu quarto, sempre de leve entrou no meu, veio chegando e ficou de pé junto a mim. Com que finalidade? — perguntava eu. Cobrir-me ainda? Repetir-me conselhos? Ouvi-a então soluçar e quase fui sacudido por um acesso de raiva. Ela estava olhando para mim e chorando como se eu fosse um cadáver — pensei. Mas eu não me parecia em nada com um morto, senão no estar deitado. Estava vivo, bem vivo, não ia morrer. Sentia-me a ponto de gritar. Que me deixasse em paz e fosse chorar longe, na sala, na cozinha, no quintal, mas longe de mim. Eu não estava morto. 

Afinal, ela beijou-me a fronte e se afastou, abafando os soluços. Eu crispei as mãos nas grades de ferro da cama, sobre as quais apoiei a testa ardente. E adormeci. 

Acordei pela madrugada. A princípio com tranqüilidade, e logo com obstinação, quis novamente dormir. Inútil, o sono esgotara-se. Com precaução, acendi um fósforo: passava das três. Restavam-me, portanto, menos de duas horas, pois o trem chegaria às cinco. Veio-me então o desejo de não passar nem uma hora mais naquela casa. Partir, sem dizer nada, deixar quanto antes minhas cadeias de disciplina e de amor. 

Com receio de fazer barulho, dirigi-me à cozinha, lavei o rosto, os dentes, penteei-me e, voltando ao meu quarto, vesti-me. Calcei os sapatos, sentei-me um instante à beira da cama. Minha avó continuava dormindo. Deveria fugir ou falar com ela? Ora, algumas palavras… Que me custava acordá-la, dizer-lhe adeus? 

Ela estava encolhida, pequenina, envolta numa coberta escura. Toquei-lhe no ombro, ela se moveu, descobriu-se. Quis levantar-se e eu procurei detê-la. Não era preciso, eu tomaria um café na estação. Esquecera de falar com um colega e, se fosse esperar, talvez não houvesse mais tempo. Ainda assim, levantou-se. Ralhava comigo por não tê-la despertado antes, acusava-se de ter dormido muito. Tentava sorrir. 

Não sei por que motivo, retardei ainda a partida. Andei pela casa, cabisbaixo, à procura de objetos imaginários enquanto ela me seguia, abrigada em sua coberta. Eu sabia que desejava beijar-me, prender-se a mim, e à simples idéia desses gestos, estremeci. Como seria se, na hora do adeus, ela chorasse? 

Enfim, beijei sua mão, bati-lhe de leve na cabeça. Creio mesmo que lhe surpreendi um gesto de aproximação, decerto na esperança de um abraço final. Esquivei-me, apanhei a maleta e, ao fazê-lo, lancei um rápido olhar para a mesa (cuidadosamente posta para dois, com a humilde louça dos grandes dias e a velha toalha branca, bordada, que só se usava em nossos aniversários. 

(“Os Gestos”, Editora Melhoramentos — São Paulo, 1975 e em “Os cem melhores contos brasileiros do século”, seleção de Ítalo Moriconi, Editora Objetiva — Rio de Janeiro, 2000, p.190. 

Osman Lins: problemas inculturais brasileiros [org. Fábio Andrade]

Clássicos  osman-lins-angela14-300x202 Osman Lins, o talento de um espírito indômito

Sua paixão pelo ofício de escritor levou-o a orientar sua vida na direção de uma radical realização literária, às custas de privações e sacrifícios. Deve ter sido uma referência à sua própria trajetória a idéia de que o escritor, em nosso país, deve sacrificar um dedo para preservar a mão ou, em casos mais drásticos, a mão para salvar o braço. Assim são suas imagens e metáforas: contundentes e inquietantes. Sempre fez questão de ressaltar sua origem nordestina que não significava o ponto de chegada de sua obra, mas ao contrário o ponto de partida de um universo rico e esquivo a clichês e estereótipos. 

Na década de 40 muda-se para o Recife, datando dessa época suas primeiras colaborações em jornais da capital. Ingressa como funcionário do Banco do Brasil, experiência que serviu para demonstrar, como ele mesmo declarou em entrevistas, a incompatibilidade entre seu espírito criador e a vida burocrática.  

Em 54 acontece sua primeira grande conquista literária: o romance “O Visitante” ganha o prêmio Fábio Prado, levando o jovem autor pela primeira vez a São Paulo. O livro é publicado no ano seguinte. “O Visitante” contém traços do talento que ao longo do tempo amadureceria. O livro narra a história de uma professora de cidade do interior que se vê envolvida com um pai de aluno. Como nas outras narrativas osmanianas, a história ocupa um lugar secundário diante da maneira inventiva como se conta a história. 

Na década de 50, o autor começa a escrever suas primeiras peças, também premiadas. Sai em 57 seu primeiro livro de contos – “Os Gestos” – que também conquista prêmio literário. Realiza no início da década de 60 sua primeira viagem para a Europa, concretizando um dado importante na sua formação de escritor. As viagens para o velho continente tiveram um papel fundamental no seu amadurecimento intelectual. Ele via a literatura como continuidade de uma força artística capaz de unir temporalidades distintas em símbolos e imagens poéticas. Osman Lins foi um escritor animado pela idéia de tradição, não como um obstáculo à mudança, mas como algo vivo capaz de dar forma ao presente. Em 61 também estréia “Lisbela e o Prisioneiro”, com montagem da Cia. Tônia-Celi-Autran. Também em 61 é publicado o romance “O Fiel e a Pedra”, seu segundo romance e terceiro livro. “O Fiel e a Pedra” marca o fim de uma fase, a que mantém o escritor ainda preso a recursos narrativos tradicionais. 

Morando em São Paulo, para onde tinha se transferido em 62, escreve “A Guerra do Cansa-cavalo” (teatro) e “Capa-verde e o Natal” (teatro infantil), todos publicados em 65.  

O ano divisor de águas, porém, na obra de Osman Lins é 1966. Casado pela segunda vez, com a escritora Julieta de Godoy Ladeira, o escritor lança nesse ano o livro que lhe garantiria uma posição de destaque na literatura brasileira de sua época: “Nove, Novena”. O livro é uma coletânea de nove narrativas ousadas e estruturadas de maneira rigorosa, mesmo arquitetônica. Com símbolos e sinais gráficos organizando as vozes das personagens e focos narrativos. A sobreposição dos tempos narrativos distintos e a proliferação de um registro metafórico conferem sensação de simultaneidade à narrativa, rompendo totalmente com a linearidade.  

À época, o crítico literário pernambucano João Alexandre Barbosa, também radicado em São Paulo, escreveu o histórico artigo “Nove, Novena, Novidade”, defendendo a carga de renovação que o texto trazia para a literatura brasileira. 

Em 1970 assume a cátedra de Literatura Brasileira na Faculdade de Filosofia de Marília, e inicia o processo de composição de sua obra mais radical: “Avalovara”. Já em 71 sai a tradução francesa de “Nove. Novena” com o título de “Rétable de Sainte Joana Carolina”. Viaja, pela terceira vez, a Europa, com a segunda esposa e as filhas do primeiro casamento. Passa o ano de 72 entre as atividades de professor na faculdade e a escrita de “Avalovara”, que é publicado no ano seguinte, ano em que o escritor obtém o grau de doutor em letras. “Avalovara” é uma nova surpresa para crítica e público.  

Depois do ousado e marcante “Nove, Novena”, o escritor vai ainda mais longe, demonstrando um talento raro. O livro, que tem um enredo simples – as peregrinações de Abel, personagem escritor, por cidades européias e brasileiras, atormentado em sua condição de escritor diante das mazelas do mundo e da incomunicabilidade entre os homens – apresenta uma estrutura narrativa complexa e única. São oito histórias que se passam em tempos e espaços diferentes e que se cruzam e se alternam graças a um desenho que as estrutura não em capítulos, mas em blocos narrativos cíclicos. O desenho, por sua vez, que rege toda essa sinfonia é a união de duas figuras: um quadrado mágico, encontrado em ruínas romanas, que contém o palíndromo SATOR AREPO TENET OPERA ROTAS; e uma espiral justaposta. A frase, distribuída com suas oito letras em pequenos quadrados que formam o quadrado maior, organiza a narrativa associando cada uma dessas letras a uma das histórias, de modo que quando a espiral que o escritor sobrepõe ao quadrado passa por uma letra, aparece dentro do livro a história correspondente a ela. Ou seja, o romance se constrói como uma verdadeira espiral.A complexa estruturação do livro não prejudica sua força e poeticidade. O famoso escritor argentino Julio Cortazar afirmou, após a leitura de “Avalovara”, que se o tivesse escrito passaria uns vinte anos em silêncio. 

 
No ano seguinte, nova viagem a Europa marca o contato e contrato com editores interessados em publicar seus livros. Em 1975 sai a tradução inglesa de “Avalovara” e o escritor tem publicada a sua tese de doutoramento – “Lima Barreto e o Espaço Romanesco”. Todo o ano de 1976 é marcado por traduções de obras suas, inclusive o recente “Avalovara”, em italiano, alemão e sueco. Nesse mesmo ano Osman Lins publica seu novo romance: “A Rainha dos Cárceres da Grécia”.  

Mais uma vez a inventividade literária do autor oferece aos seus leitores outra obra singular. Num diário um professor, personagem sem nome, intenta analisar o livro (A Rainha dos Cárceres da Grécia) de sua amante – Julia Marquezim Enone. Esse livro escrito por ela e legado, após sua morte, a ele, narra as aventuras de Maria de França, mulher dilacerada por um mundo de terríveis injustiças, traduzidas no moer frio da burocracia. O romance é um misto de ensaio narrativo ou narrativa ensaística. 

Em 77 começa o projeto de novo livro, que permaneceu inacabado sob o título de “Uma Cabeça Levada em Triunfo”. Nesse mesmo ano seus artigos combativos ganham a primeira reunião no formato livro com “Do Ideal e da Glória – Problemas Inculturais Brasileiros”.  

1978 inicia-se de maneira trágica. Nos primeiros meses do ano aparecem os sintomas da doença que o calaria. Seu enfraquecimento é gradativo, levando-o a suspender a composição de seu novo romance.  

Falece no começo de julho. 

Embora tenha mergulhado em certo esquecimento, a obra de Osman Lins começou a ser revalorizada no final da década de 90, contando com inúmeras pesquisas universitárias e nova atenção por parte da imprensa. Osman Lins e sua obra continuam um marco da moderna ficção brasileira, transcendendo limites históricos e regionais em nome de uma literatura que procura as raízes da condição do homem atual, carente de um sentido que reafirme nossas potências de vida: o amor, o desejo, a liberdade e a percepção do outro. Todos estes, ingredientes decisivos da mais alta elaboração formal, como foi a obra de Osman Lins. 

Fábio Andrade 
Poeta e Mestre em Teoria da Literatura pela UFPE 
Autor da dissertação “Ordem Sinuosa – O Barroco em Avalovara de Osman Lins” 
Integrante do Grupo de Pesquisas Literárias SOL – Sodalício Osman Lins 

(Fonte: https://unifacol.edu.br/quem-foi-osman-lins/)