Poemas de Jorge Cardozo

Jorge Cardozo é Poeta e Gestor de Projetos Culturais e um dos protagonistas da movimentação cultural na Baixada Fluminense, onde participa de saraus e discute a produção artístico cultural da região. Sua poesia, recheada de elegância e imagens, é puro deleite.

Contemporâneos  CPV-no-Sarau-Um-Dedo-de-Poesia-close-Jorge-Cardozo Poemas de Jorge Cardozo

Minha formação acadêmica é toda bagunçada. Um pouco pelas condições de vida. Garoto negro, filho de operários, na Baixada Fluminense num tempo em que por aqui não existiam faculdades públicas.  

Graças à luta de muitos hoje já existem, embora devesse ter mais. Mas, devo admitir, muito pela minha própria personalidade meio bagunçada 😁😁😁. Para se ter uma ideia eu cursei um ano de Engenharia na UFF em Niterói. Estudei Comunicação Social na ECO/UFRJ (o que foi uma experiência fantástica de convivência com excelentes professores e colegas talentosos, alguns dos quais mantenho amizade até hoje). Entrei por concurso para o serviço público federal, onde exerço o cargo de Técnico do Seguro Social, já em fim de carreira. Cursei Administração na Uniabeu, em Belford Roxo, o que muito me ajudaria nos cargos que exerci um pouco depois.  

Tive oportunidade de, cedido, atuar na gestão pública de cultura na Secretaria de Estado de Cultura RJ, na FUNARTE/Ministério da Cultura e como Subsecretário na mesma área em Nova Iguaçu.  

Em paralelo às atividades públicas, estive junto a várias movimentações culturais, especialmente na literatura. Tive a sorte de dirigir a Casa de Cultura de Nova Iguaçu (Espaço Cultural Sylvio Monteiro, na época), onde convivi com figuras fantásticas, tanto da gestão como da sociedade civil, artistas, produtores, ativistas, fazedores e agentes sociais. Mais ou menos no mesmo período cumpri um mandato como presidente do Conselho Municipal de Cultura de Nova Iguaçu.   

Na cena literária atuei no espetáculo de leituras poéticas Poema de Mesa com o poeta Marlos Degani, tendo feito apresentações em diversos saraus e em dois teatros ao longo de um período total de quase dez anos.  

Fiz parte do Coletivo de Poesia Palavra Viva – CPV. Publiquei em diversos jornais, revistas e coletâneas e participei de diversos saraus. Em 2018 criei o sarau Encontro de Avohais e Outros Seres Poéticos em Belford Roxo, que acontece até hoje aproximadamente a cada três meses, fora esse período de pandemia. Num certo momento senti fortemente a necessidade de um lastro teórico para toda essa experiência prática. Foi quando entrei para a pós em Produção Cultural com ênfase em Literatura Infantil e Juvenil pelo IFRJ, e Nilópolis. Onde consegui me formar em 2013.  

Não sei se ainda tenho pique pra fazer um mestrado. Acho que sim. Depois que me aposentar. Também tenho vontade atuar como editor (já coordenei a edição de uma coletânea de poemas: XXI Poetas de Iguassu) para ajudar os autores de periferia a registrar seus trabalhos, principalmente os jovens. 

Atualmente o mundo está tão maluco que não sei se dá pra planejar alguma coisa a curto e médio prazo. Vamos ver. De qualquer forma estou preparando um novo livro de poemas, Peixe na Rede, que reunirá trabalhos que tenham a cara das redes sociais

Sete Poemas (porque sete são os caminhos) e um anexo com Vitrine, Cão e o menor poema do mundo.

Sinuosa  

Percorrer tuas curvas latifundiárias  

Feito rios riscados de asfalto  

Saber quem dorme e saber quem morre  

Nas tuas esquinas atravancadas  

  

De mendigos, camelôs ou desertas  

Conforme o fino fluxo das horas  

Das gentes, dos dias, dos ganhos  

Acariciar tua epiderme  

  

Sintética em cada rasgo ímpar  

Em cada côncavo – ferida tua  

Ir até os teus limites, olhar  

O tal emaranhado que te cobre  

  

E te morde. Tudo a te amar  

Periga sim, cidade sinuosa.  

  

Jorge Cardozo  

Verso Sintético  

Meu verso sintético estala  

Na periferia da Guanabara  

Guardo a palavra rara  

No barro das ruas   

No breu das valas  

Extraio a tal sintaxe  

Dos assassinatos e dos massacres  

Rimo Dutra e ferrovia  

Shangrilá e Gramacho  

Trafego pela Chatuba  

Entre igrejas e despachos  

Ritmo samba funk  

Velocidade de enchente  

O poema desborda o Botas  

Brota Pavuna  

Anuncia a baía  

  

A poesia cai  

Chuva de palavras  

Sobre a Baixada.  

  

Jorge Cardozo  

Belas, etc  

Belas, rebeladas e de qualquer lugar  

Assim são as meninas más  

As que vão aonde querem  

Fazem o que querem  

Param no bar  

Bebem cerveja ou não  

E nunca saíram na capa da Veja  

Nem querem.  

Guerreiras, inteiras, plenas  

Abusadas, absurdamente humanas  

Femininas se assim escolhem  

Feministas se assim se definem  

Deusas, filhas das deusas  

Ou questionadoras das deusas  

Depende do seu momento e da sua vontade.  

  

Quem tem medo das meninas más?  

As boas vão para o céu, dizem.  

As outras vão aonde quiserem.  

  

Jorge Cardozo  

Muda  

Há que ter mudança  

Shiva chama   

Ísis dança  

Exu arremessa a lança  

Através do umbral  

O guerreiro caça seu destino  

O menino fica velho  

O velho vira menino  

Toda a forma muda  

Todo o vaso derrama  

Todo o ovo quer ser carne  

E colocar outro ovo  

De novo  

E de novo  

E de novo  

  

Jorge Cardozo 

RAP do Negro Alto  

Negro, alto, cidadão  

do mundo  

do submundo  

do terceiro mundo  

  

Posto à margem  

Poeta marginal  

rabisco um sinal  

nos muros do subúrbio  

  

Me dizem preto  

me fazem pobre  

me querem preso  

me falam: morre!  

  

Negro, alto, cidadão  

eu faço rima  

pela contramão  

a minha força   

é saber, compreensão  

  

Paciência, insistência  

consistência, consciência  

Violência: sim ou não?  

  

Negro, alto, cidadão  

Por isso sou da luta  

Nenhum filho da puta  

vai me derrubar  

  

Nem poliça nem ladrão  

  

Mas se algum traíra  

me pegar  

surge logo um filho  

em meu lugar  

  

Negro, alto, cidadão!  

  

Jorge Cardozo  

Peixe  

 

Porque a palavra  

é um peixe escorregadio  

que se encanta  

em qualquer água  

até na saliva  

só quem a coloca  

em rede e a organiza  

é o poema – esse monstroi  

que o poeta pensa  

ser sua cria  

  

mas que nada  

quem nada fora da rede  

é a palavra  

o poeta só lhe pede  

que se abra  

e diga onde navega  

ou naufraga  

  

Jorge Cardozo  

Anexo

Vitrine  

Sempre quis saber o cheiro das madeixas ruivas das garotas da Rua Toneleiros. Mas mal chegava, elas já mudavam de calçada. Certo dia o vigia de uma loja de presentes segurou meu braço e me manteve detido porque eu estava admirando as pedras preciosas expostas na vitrine. Naquele tempo eu não via a poesia entornada no chão. Também não sabia que era negro.  

Jorge Cardozo  

O Cão sem Dobra  

Nas vezes em que o amor se desdobra  

Na obra da paixão mais desmedida  

Em vão no espelho a face que me fita  

Procura a pluma oculta, alguma sobra  

  

De outras tantas noites, a mordida  

Da solidão – lençol sem mancha ou dobra  

Buscasse por um cão de olhos acesos  

E o encontrasse encolhido e preso  

  

Seria então a obra iniciada  

Dentro da não dormida madrugada  

Na qual me rasgo e me exorcizo  

  

À caça do inédito verso – preciso  

E ai daquele algoz que mais me cobra  

O outro eu a perseguir o riso.  

  

Jorge Cardozo  

Todo poder é poda.

Jorge Cardoso

Mais sobre o autor

Contemporâneos  jorge-cardoso-300x225 Poemas de Jorge Cardozo

Poeta, militante, gestor e Produtor Cultural, Jorge Cardozo iniciou sua atuação no movimento de arte/cultura no Grupo Calabouço. Fez parte do grupo de performances poéticas Lúcio Agra e o Buraco Elétrico e do Cineclube Experimental. Publicou o livro de poemas De Dentro do Tempo Blindado. Organizou a coletânea XXI Poetas de Iguassu. Criou e coordenou a Oficina de poesia Viva Palavra.   

Foi Superintendente de Cultura do Estado do Rio, Coordenador Administrativo da FUNARTE,  presidente do Conselho Municipal de Cultura de Nova Iguaçu, diretor do Espaço Cultural Sylvio Monteiro e Subsecretário de Cultura de Nova Iguaçu. Esteve na coordenação do ECOS da Baixada. Recebeu, da Câmara Municipal do Rio de Janeiro, Moção de congratulações pelo trabalho em prol da divulgação da cultura afro-brasileira. 

 

É pós-graduado em Produção Cultural com ênfase em Literatura Infanto-Juvenil pelo IFRJ.   

Fez parte do Coletivo Palavra Viva – CPV, grupo que produziu e apresentou espetáculos temáticos a partir de seus próprios poemas. Atuou no espetáculo de leituras poéticas “Poema de Mesa”, com Marlos Degani. Participou da antologia     Beleza! da Oficina de Literatura Cairo Trindade   

Desde 2018 coordena o sarau Encontro de Avohais e Outros Seres Poéticos na cidade de Belford Roxo/RJ.