Poemas de Marcelo Mourão
Donos de construções impactantes e precisas, os poemas de Marcelo revelam a maestria de quem conhece a fundo a literatura e sabe dar forma ao Canto. Um dos quatro do POLEM, encontro de poetas no Leme, Mourão promoveu encontros com a poesia que frutificaram. Claro, se a Musa lhe foi generosa, a sorte dele é toda nossa.
CAVERNA PÓS-MODERNA
Agora, imagina, Glauco, os homens em moradas muito belas
— numa época vista e tida como, de todas, a mais “moderna” —
bem diferentes de como as nossas velhas residências eram.
Imagina esses homens, no interior desses seus lindos lares,
soltos, mas cercados por muros e grades por todos os lados,
saindo só quando podem, devem ou não estão acuados.
Imagina-os todos prisioneiros muito mais em si mesmos
do que nessa cela que eles costumam chamar de abrigo ou casa.
Veja-os calados, com olhos vidrados em elétricas telas,
cativos em suas mentes, sem correntes nas mãos e nas pernas.
Eles pouco conversam, se olham, se ouvem ou até se percebem:
não há mais tempo nem mesmo para aquilo que lhes interessa.
Nessas mesmas telas, só sombras, sobras, fragmentos da vida,
e não a gigante e real dimensão que é estar vivo nela.
Pedaços de gente, de sonhos, de planos, de vozes, de ideias
pululam e mesclam-se; como fantasmas errantes se alternam
à procura de atenção, numa fila de espera, e vociferam,
nessa bacanal — ou baile de máscaras — onde tudo é festa.
Imagina, Glauco, esses homens com essas telas a sós falando,
por todos os dias de todos os meses de todos os anos,
procurando por ver a si mesmos e também os outros homens,
mas as janelas elétricas, que nada escondem, nem respondem,
ligadas, são luzes que não iluminam o que há defronte a elas,
desligadas, são espelhos mostrando uma cara cheia de fomes.
O OLHO DE FERRO
para Michel Foucault e George Orwell
Feito um farol, porém desprovido de lume e soturno,
segue o olho da máquina sem piscar nem um segundo.
O olho me olha e olha tudo mais à sua volta
sempre com um olhar de pergunta, nunca de resposta.
Feito um deus, que tudo escuta, tudo sabe e tudo vê,
segue o olho mecânico a nos enquadrar numa TV.
Esse mesmo olho oco, que escaneia corpos e rostos,
jamais irá hackear o que há na alma do seu oposto.
Feito um cão de guarda, ou um juiz furioso e sem dó,
segue o olho de ferro a vigiar tudo ao seu redor,
numa fome de fera que tudo decifra e devora.
E, assim, olhos espreitam, surgem, dão botes feito cobras.
E, assim, mil olhos vão se clonando e, quanto mais, melhor.
E assim caminha a humanidade: acompanhada e só.
NÁUFRAGO
para Ferreira Gullar
Hoje o verso
não conta
nem canta
é talvez certo
que seja seta
ou espinha presa
aqui na garganta
Hoje a palavra
não corre
nem cansa
talvez algum garrote
pôs minha voz na tranca
impedindo-a de vir cá fora
silenciada até segunda ordem
Hoje o poema
não almoça
nem janta
sequer fala de amor fé
ou qualquer outra esperança
Hoje o poeta só bebe
a secura de suas lembranças
O poema paira perdido no vento
às vezes morno às vezes forte
às vezes porto às vezes morte
às vezes renascido deste corte
Só que hoje meu silêncio é bote
e estou isolado no mar
levado pela própria sorte
A SAGUMANA NO SOLO DE GAIA
O bichumano subiu no telhado.
Tem medo de cobra e ataque de rato,
da ave agourenta que pelo céu passa
e até de si mesmo: réu e comparsa,
vitimalgoz de sua própria desgraça.
O cegumano rasgou seus contratos.
Não enxerga leis, regras e cláusulas.
Fez sua fome não caber mais no prato.
Mesclou Deus e Darwin numa lógica crápula:
o paraíso é dos ricos de cada raça.
O ser engano ergueu o seu reinado.
Inventou a guerra, sujou mares e serras,
prostituiu todos os seus bens sagrados.
Seu destino é devorar pedras e pérolas,
sem notar a diferença que há entre elas.
A PARÁBOLA DO ILUMINADO
Vivia na escuridão.
Encontrou uma vela:
que grande emoção!
Anos e anos na cela.
Custou a se acostumar
com luz, cor e som.
Mas aí, depois da vela,
achou uma lanterna.
Nem se lembrava mais
dos tempos de caverna.
Mas a vida sempre voa
e até a própria lanterna
deixou de ser tão boa.
Buscou então um farol.
Depois desejou a lua,
as estrelas, os cometas.
E, por fim, quis o sol,
para colocá-lo inteiro
à sua disposição.
Brincou de deus e diabo
e ficou cego com
tanta iluminação.
Mal sabia o “iluminado”
que a tristeza da escada
é sonhar céu e acordar chão.
Marcelo Mourão é professor graduado em História e Letras (Língua Portuguesa e Literatura), pós-graduado em Literaturas de Língua Portuguesa pela Universidade Estácio de Sá (Unesa) e em Literatura Brasileira pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Em 2020, tornou-se mestre em Literatura Brasileira, pela UERJ. É também poeta, escritor, pesquisador, crítico literário e produtor cultural. É o criador, produtor e apresentador do sarau POLEM, iniciado em 2008 no Leme (RJ). É, desde 2019, o diretor de comunicação da União Brasileira de Escritores (UBE). Há textos seus publicados em várias antologias, periódicos literários, sites e revistas acadêmicas, do Rio e de outros estados brasileiros. Em 2018, organizou a coletânea comemorativa POLEM 10 anos, lançada pela Ventura editora. Possui quatro livros solo editados: O diário do camaleão, poesia (2009); Temas em literaturas de língua portuguesa: os diferentes olhares, crítica literária (2015); Máquina mundi, poesia (2016); e Rotas e rostos: questões de literatura brasileira, crítica literária (2019). Contato: polem.rio@gmail.com