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Poemas de Mírian Freitas

Poemas de Mírian Freitas

Mírian Freitas é escritora e doutora em Estudos de Literatura (UFF). Escreveu Intimidade vasculhada (narrativas- 7Letras), Exílios naufrágios e outras passagens (poemas- Patuá), Caio Fernando Abreu: Uma poética da alteridade e da identidade (Ensaio com imagens- CRV).

MEMÓRIA OBLÍQUA

Retenho entre o peito e a garganta 

tua palavra: 

— precipício 

Quantas lágrimas  

desceram rio abaixo 

pela garganta 

condensada 

em estado líquido, 

quantas fendas e águas fundas 

na boca desse gosto 

amanhecem  

envenenadas 

pelo vapor obscuro 

entre os dentes 

− prazer abissal e incerto. 

 

A sede rasga o casco dos cavalos 

noturnos 

— a lembrança é a descoberta daquilo que já está morto. 

UMA OUTRA PARTE

Parte de mim

sonha silenciar penhascos

e as vozes íntimas

no estrondoso grito da partida.

 

Já consegues me ver como fagulhas no breu do deserto

como chispas de fogo nas monumentais montanhas

do Tibet?

 

Só uma parte pode ter a dimensão de mim.

Se sonhei ervas, prantos, armaduras, folha

se sonhei túmulos e vitrinas sem os impecáveis

manequins

me julgas opaca?

 

Se olhares ao redor como quem me vê

em minúcias

saberás do meu voo incerto

sobre as ilhas que eu não sei

sobre pedras, cânticos, cavalgadas,

nada mais há além da contemplação.

 

O que esperas de mim?

 

Das funduras do poço que habito

os peixes de sal abrem suas escamas

e testemunham a resiliência e o chumbo

no rosto desta tarde.

ATMOSFERA DAS RETICÊNCIAS

I

Parte de mim

sonha silenciar penhascos

e as vozes íntimas

no estrondoso grito da partida.

 

Já consegues me ver como fagulhas no breu do deserto

como chispas de fogo nas monumentais montanhas

do Tibet?

 

Só uma parte pode ter a dimensão de mim.

Se sonhei ervas, prantos, armaduras, folha

se sonhei túmulos e vitrinas sem os impecáveis

manequins

me julgas opaca?

 

Se olhares ao redor como quem me vê

em minúcias

saberás do meu voo incerto

sobre as ilhas que eu não sei

sobre pedras, cânticos, cavalgadas,

nada mais há além da contemplação.

 

O que esperas de mim?

 

Das funduras do poço que habito

os peixes de sal abrem suas escamas

e testemunham a resiliência e o chumbo

no rosto desta tarde.

II

Esta é uma atmosfera de reticências, 

surtos e angústias de cabelos grisalhos. 

Na boca que sopra esse lento modo de sofrer, 

reside uma  cratera desconhecida de arbustos em desordem: 

estranhas imagens de cicatrizes 

paisagem intacta, memória coagulada nos ossos, 

mente brutal que alimenta os flancos selvagens da carne. 

 

Esta é uma espécie de crime que tem sua fundura nas raízes 

do  amor 

na arte ardilosa da paixão: 

– faz parte do instante dos vivos e dos mortos. 

III

Agora, 

corpo repleto ora de estrelas ora de mariposas 

sinto que não vou parar nunca de morrer 

por tua procura 

a cada pequeno gesto 

na lâmpada, nos vultos do inverno 

na turva e conformada eternidade. 

RETRATO DE UM POETA VIETNAMITA

(A Ocean Vuong) 

Seu corpo de menino magricela é poesia.  

 

É uma inesperada poesia de instantes: 

ranhuras e intermitência. 

Os olhos rasgados como se envergados no deserto 

pedem água  porque têm sede. 

Sede de palavras que cicatrizem as metáforas 

do  mar,  da mãe, do exílio. 

Metáforas estas, que sangram aos poucos na falência do espírito 

na desordem multiplicada de emoções difusas 

sem nome. 

 

Seus sovacos são tão profundos como duas covas  de guardar 

 sentimentos. 

 

A infância permanece intacta (ainda) nos seus ossos 

 e na sua pele escurecida. 

 

Memórias de Saigon num rio de fumaça 

estão pregadas às paredes de sua casa íntima. 

 

Um pai sem rosto tatuado na carne híbrida.  

Uma avó com o passado e as guerras nos cabelos. 

Uma mãe de chinelos, adormecida pra sempre numa cama de bambu. 

 Um nome para nunca mais esquecer do mar: 

 

− Ocean,  

ninguém abandonará suas mãos em nenhum instante. 

 

Da sua vidraça em Northampton, a vida passa enquadrada por uma janela:  

molduras da neve e das árvores cegas pelo inverno. 

  

No centro de seu coração 

reside um bibelô de origami 

à meia luz de um crepúsculo.  

 

O vestígio de suas origens asiáticas aprofunda-se 

como raízes na terra da promessa.  

 

Pelo olfato materno, a luz que foi dada a você tem o cheiro imortal de crisântemos e de sombras frias. 

MÁQUINA DE FABRICAR ESQUECIMENTOS

Tantos nomes a imitar o silêncio 

na combustão do pensamento em chamas: 

− laços cortados do tamanho dos fios  dos cabelos do vento, 

não há mais razão para te precipitares no vazio das noites incendiadas. 

 

Chove agora neste chão de vícios inertes e de frias esperanças. 

 

Cadáveres escoltados pelo açoite das cabeças convulsas 

balançam a cabeleira  imortal e seus segredos além-túmulo. 

A máquina de fabricar esquecimentos produz fórmulas rápidas 

de apagar os nomes, 

intocáveis nomes 

que fulguram ainda em meu coração. 

CAIO FERNANDO ABREU: UMA POÉTICA DA ALTERIDADE E DA IDENTIDADE

O livro de Mírian Freitas é um ensaio ilustrado com imagens de Bob Wolfenson (capa e miolo), Adriana Franciosi, Juan Esteves, Juvenal Pereira, Paulo Giandalia, Marcos Santilli e também dos arquivos do autor que estão no espaço de documentação e memória cultural- DELFOS PUCRS

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Sobre a autora

Mírian Freitas, escritora, reside em Juiz de Fora, MG (Brasil). Doutora em Estudos de Literatura (UFF), lecionou nos EUA, em Massachusetts. Atualmente é professora do IFSUDESTE/JF. Escreveu Intimidade vasculhada (narrativas- 7Letras), Exílios naufrágios e outras passagens (poemas- Patuá), Caio Fernando Abreu: Uma poética da alteridade e da identidade (Ensaio com imagens- CRV). Publicou em antologias no Brasil e Portugal (Leiria e Lisboa) e nas revistas CULT, Palavra Comum, Subversa, Mallarmargens, Acrobata, Subversa, Ruído Manifesto, Desvario, Diversos Afins e outras. @mfreitasbrazilmg

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