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QUANDO PACIENTES PERDEREM A PACIÊNCIA

QUANDO PACIENTES PERDEREM A PACIÊNCIA

O poeta Lucas Bronzatto volta a Revista Arara. Sua poesia engajada é reflexo de seu compromisso de vida com a educação e a saúde do país em que habita, onde exerce, como operário, o papel que lhe coube. Os versos de Bronzatto mostram uma apreensão para além dos fatos, donos de uma verdade que não cabe no papel.

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Um poema que não seja sobre a poesia   
Um poema que não seja mera denúncia   
do que não é nenhuma novidade   
pra quem vive massacrado pela barbárie   
Um poema que não seja sobre o que não vivo   
e que outras pessoas de peles dilaceradas   
podem dizer melhor e mais fundo   
Um poema que não seja uma credencial   
pra entrar nessas rodas de gente consciente do centro   
que comunga das mesmas opiniões   
e vomita indignações em versos   
que – como toda bolha – se dissipam   
antes de dormirmos bêbados de puro malte   
Um poema que não seja puro esmalte   
nem trocadilhos e jogos de palavras vazios   
Um poema que não pretenda sensibilizar   
quem nunca vai mudar de ideia   
porque lucra com as feridas que o poema escancara   
Um poema que não seja uma provocação fajuta   
versos que não sejam dedos apontados nas caras   
condenando modos de vida   
ou dedos apontados pra terra pregando desapego   
como se todo mundo pudesse escolher quanto trabalha   
Um poema que não exploda uma meritocracia   
e erga outra com técnicas de bioconstrução   
Um poema que não seja um mosaico de palavras de ordem   
de conceitos desse idioma que poucos falam   
Um poema que não seja nada disso   
de quase tudo que escrevi até hoje   
daqui dos meus privilégios   
Um poema que não seja sobre a poesia   
como esse

SOBRARÁ ALGUÉM

Primeiro morreu um mestre de capoeira na Bahia   
Mas eu não me importei com isso   
Eu não sou petista e tinha extremismo dos dois lados   

Em seguida morreram alguns sem terra e ativistas no campo   
Mas eu não me importei com isso   
Eu não apoio quem invade terra que não é sua   

Depois morreram ativistas indígenas defendendo a amazônia   
Mas eu não me importei com isso   
Porque eram todos das mesmas ongs que tacaram fogo na floresta   

Antes ainda morreu uma vereadora negra, bissexual, socialista e favelada   
Mas eu não me importei com isso   
Eu não sou mulher, não sou negro, nem favelado, nem gay   
e muito menos socialista pra chorar por quem defende bandido   

Agora estão morrendo familiares meus vítimas do vírus chinês   
Com isso eu me importo   
e acuso os médicos que enganados pela mídia   
não prescreveram cloroquina   
e avisei quando peguei o megafone no ato em defesa do mito   
entre uma tosse e outra   
que quando me levarem   
pro hospital   
vou armado   
e quero ver médico não respeitar minha opinião   

(Intertexto do intertexto, seja de Martin Niemoller, seja do Brecht ou seja do Eduardo Alves da Costa)   

QUANDO PACIENTES PERDEREM A PACIÊNCIA*

Ninguém mais vai morrer na porta dos hospitais   

Nenhum desrespeito será tolerado   

Não existirão mais farmácias privadas   

nem planos nem seguros   

pois será proibido pagar por saúde   

quando pacientes perderem a paciência   

   

Leitos deixarão de ser propriedade de uns poucos   

Na fila – única – classe, cor de pele, gênero, orientação sexual   

não determinarão quem vive e quem morre   

porque nenhuma pessoa, nenhum povo mais   

será classificada pelo Estado como “matável”   

quando pacientes perderem a paciência   

   

O lucro não vai mais definir doenças   

e ninguém mais vai engolir junto com os comprimidos   

as péssimas condições de vida e trabalho   

porque não haverá mais opressores e oprimidos   

quando pacientes perderem a paciência   

   

Acabará a exploração do trabalho e da natureza   

e vírus nenhum se espalhará ou surgirá   

por causa de jeitos doentios de se viver   

já que a maior incubadora de tragédias “naturais”   

(o capitalismo) será destruída a marretadas   

quando pacientes perderem a paciência   

   

Não existirão propagandas de remédios nem de alimentos   

Será tamanha a clareza das pessoas sobre seu corpo   

que a palavra prescrição será abolida do dicionário   

Todo e qualquer tratamento será decidido em conjunto   

quando pacientes perderem a paciência   

   

Muitos intelectuais ficarão sem chão   

ao verem que o problema central não era de administração   

que as grandes soluções não eram humanização, formação,   

avaliação, regulação, negociação   

Ficará claro que o melhor dispositivo de gestão é a revolução   

quando os pacientes perderem a paciência   

   

Além de palmas, profissionais receberão respeito   

e condições e contratos dignos de trabalho   

Fundações, O.S., EBSERH, serão apenas letras   

e palavras indecifráveis de papéis amarelados   

no museu de nosso passado precário   

quando as pacientes perderem a paciência   

   

Não haverá mais abismos nem hierarquias   

nem gritos nem silêncios nem prisões nem indiferenças   

Os pacientes é que serão os deuses   

quando perderem a paciência   

   

Quando pacientes perderem a paciência   

numa reunião qualquer do centro comunitário do bairro   

serão decididos os rumos da ciência   

(Lucas Bronzatto)   

   

*)versão de poema “Quando os Trabalhadores Perderem a Paciência”, de Mauro Iasi.    

Versão 2020, pandêmica.    

O PLANO

Infertilizar a terra tanto tanto tanto   

que nossa gente caída só renasça  

se virar semente da Monsanto   

Lucas Bronzatto é um rapaz latinoamericano vindo do interior de São Paulo que escreve poemas e nas horas vagas trabalha na área da saúde. Encontra seus versos nas contradições do cotidiano, nas violências, resistências e impaciências diárias, nas dores e nas cores do mundo. 

Não anda só, e por isso faz parte de vários coletivos. Faz parte do recém-fundado grupo de teatro “Gertrudes está louca”. É membro do Coletivo Tantas Letras, de São Bernardo do Campo e organiza, com este coletivo, o Sarau Lapada Poética, desde 2013. Compõe também a equipe que organiza o Sarau/Slam do Grito, no bairro Ipiranga, em São Paulo. Junto ao poeta Jeff Vasques, fundou em 2017 o selo Edições Trunca, dedicado à tradução e divulgação de poetas latinoamerican@s de luta, quando publicaram a antologia “Cantos à nossa posição”, do poeta Roque Dalton. 

Poemas de Lucas Bronzatto

Lucas Bronzatto é um poeta latinoamericano que, como a maioria de nós, não possui um banco. É dono de versos precisos, preciosos, cuja matéria é o agora, o tempo que se apresenta, sem embrulho, com direito a nó no estômago, arranhando o âmago e revelando o amargo. É o presente de presente e um direto de esquerda.

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