Um deus foragido olha do cimo da destruição
Um poema de Wanda Monteiro constante na coletânea Antifascistas: Contos, crônicas e poemas de resistência, recente lançamento da editora mondrongo, como uma resposta literária ao ódio que tomou de assalto o cotidiano do país.
Um deus foragido olha do cimo da destruição
I
Um círio infindo de punhos acesos
coturnos raivosos em marcha
um rebanho desembesta em fúria e a esmo
uma revoada de abutres sobre um campo
coalhado de ossos
À margem esquerda
olhos atônitos nem sequer esboçam mínima reação
nem sequer vicejam a luta e sucumbem à opressão
toda vociferação converte-se em murmúrio
imprecação e silêncio
No abrasar das horas o tempo reflui num leito de açoites
No pouso do medo toda réstia de luz coabita o breu
o medo cai como pedra no fundo de cada dia
e a desesperança cintila à boca de cada noite
O poder no cio fecha as janelas de um passado fincado em irremovível paisagem
— o poder tem os olhos de uma noite sem fim
A violência é a ordem do dia — o veneno
que entorpece e contagia
abre fendas radioativas onde corre a larva do ódio
Algo inominável deflagra a combustão das horas
interdita o tempo
o tempo partido
o país partido
a cidade partida
o humano partido ao meio
Toda gente se extingue para além das casas
e dos muros
a sobrevida pulsa em ilhas dentro de ilhas
Sob a mira do fuzil
a carne negra
a carne índia
a cor vermelha
A descrença é a ferida aberta
o cancro incurável
a segregação é a flor sanguínea de verbo coagulado e toda esperança desfolha aos ventos que chicoteiam brancas bandeiras
A intolerância forja a gangrena
seus raios de dor são o traçado que revela a geometria do terror
No átrio espelhado de ocasos
a besta de esporas e chifres faz a festa
dança — gargalha e vomita sobre a clareira côncava que engole os cânones dos justos
Nesse reino escuro o frio arde e queima ao estio do sol
vergam-se os girassóis
e gárgulas saem de seus buracos de sangue
para lamber as feridas da paz
Mulheres e homens que teimam
reinar em si a íntima liberdade de pensar
decretam o autoexílio
todas ilhadas
todos ilhados
ilhados e tristes
terrivelmente tristes
Um deus foragido olha do cimo da destruição
contempla o ataúde da fé
e chora sobre as ruínas do humano
em seus gestos finais de autofagia
a sobrehumana desordem de sentidos precede o golpe fatal:
a morte da liberdade.
II
São tensões de face à face
mãos vestidas de esporas _ dedos em riste
carnívoros gestos na exatidão dos golpes
rosnam sua cotidiana covardia
no estio da luz a orfandade do sol
sombras adentram pulmões
a melancolia reflui nas veias dos que tentam resistir
são implacáveis as patas do fascismo
_ a matilha avança passo a passo
os dias nascem rarefeitos e sequer sustentam
a combustão no peito de quem sonha
as noites levantam muros de silêncio
não há sono _ há vigília acesa respira
o éter gélido de fantasmas redivivos
_ a matilha avança passo a passo
a história tem suas raízes arrancadas e abrasadas
na fogueira de negra crista onde sua morte é decretada
nada mais assoma a memória das estações
os rebanhos gozam ao respirar o enxofre exalado por pastores
que proclamam a negação de lutas
e sagas na amplidão do humano
_ a matilha avança passo a passo
nenhum deus se rebela
todos dormem seu sono lisérgico de abandono e desistência
a besta no cio sai dos confins do tempo e avança suas garras sobre a paz
_ a matilha chega
alinha-se em flancos
os rios secam _ a vida deixa de ser corrente profunda e caudalosa
na paisagem mortal as margens são áridas o chão é ocre
tudo é sequioso
o mal rasteja sobre leitos cobertos de lama
de lodo
e sangue
III
Nesses dias em que tudo ri e rosna
nessas noites em que tudo sangra e cala
não há como digerir o fruto dos ocasos
são espinhos cravados na garganta
a latejar o pus da voz perdida
Não há como proferir a palavra medo
sem rasgar o céu
sem rasgar o chão
esse chão adoecido de paralisia
e desmotivo
esse chão
onde tudo se alastra ao agouro
das sombras
esse chão onde tudo se corrói
ao éter dos desafetos
esse chão
onde toda esperança hiberna em pálpebras
fechadas de olhos cegos de futuro
esse chão
fendido na contrafação das forças
coberto de feridas
órfão de paz
O medo não acende a vida
o medo acende a morte
A morte é um enorme silêncio
um canto branco
de mal intencionada lira
que atravessa a vida
deixando-a em pedaços
Wanda Monteiro
Uma resposta literária ao ódio que tomou de assalto o cotidiano do país, e que preocupa também por virar tendência em outras partes do mundo. Um livro que se propõe a ser mais um instrumento na futura disputa pela narrativa e pelos afetos, para que as atrocidades de hoje não se repitam no futuro. Não se trata de uma obra que aborda o fascismo no sentido acadêmico/histórico estrito, o fascismo que é alvo de oposição e combate pelas ideias, argumentos, arte e ficção nessas páginas é movimento marcado por várias semelhanças com o fenômeno histórico de mesmo nome, mas também por características peculiares e próprias de seu tempo. O antifascismo, contudo, tanto aquele que combateu os movimentos do início do século XX, quanto o que se opõe aos tempos sombrios do Capitalismo pós-democrático é, em essência, uma só coisa: a antítese do ódio de seu tempo. Esta é uma obra de antifascistas dos nossos dias.
Clique na imagem para saber mais
A MONDRONGO LIVROS
A Mondrongo é uma editora baiana que publica literatura brasileira de excelência. Fundada em 2011 pelo escritor Gustavo Felicíssimo como um braço editorial do Teatro Popular de Ilhéus, atualmente está em vôo solo. Publica poesia, prosa, estudos acadêmicos e livros de arte.