HERANÇA
Eis aqui tudo que tenho
meu único bem
minha única herança:
meu corpo
esculpido pelo trabalho
envergado pelo que não pude ser
talhado e retalhado pela submissão forçada
Ossos pouco a pouco entortados
pra se adaptar à posição do corpo
na divisão internacional do trabalho
Ombros cabides de tantas camisas
dessas que dizem que é preciso vestir
pra trabalhar aqui
Artérias afinadas de tanto “dar o sangue”
que eles com seus ventríloquos do RH
desesperadamente tentam pintar
com as cores da empresa
pra disfarçar o vermelho em nossas veias
Debaixo da pele
uma camada extensa de cansaço depositado
De cada músculo retorcido
pendem cláusulas de contratos de trabalho:
Não contestarás;
Aceitarás de bom grado toda e qualquer opressão;
Nós entraremos com as máquinas
vocês sairão com as lesões;
Deixarão idade e levarão insalubridade;
Vida fora das bordas do crachá não há de ter;
Eis aqui tudo que tenho
meu único bem
minha única herança:
um corpo máquina
duas mãos ferramentas
uma cabeça em parafuso
um estômago incinerado
uma coluna repleta de torturas
e sonhos de levantes diante do horror
de nossas tarefas cotidianas de sobrevivência:
arquitetar planos de fuga
pra quando as barragens romperem
pra quando as caldeiras explodirem
pra quando as plataformas cederem
pra quando a água inundar
imaginando quem a gente vai ajudar a escapar
quando a sirene tocar
se é que a sirene vai tocar
se é que vai dar tempo de sair com vida
e se é que é dá pra chamar de vida
o que vive quem consegue sair vivo
Quem sobrevive a um acidente de trabalho
é um sobrevivente de guerra
Num país em que sete pessoas morrem por dia
em acidentes de trabalho
quem sobrevive a um dia de trabalho
é um sobrevivente de guerra
Depois do maior acidente de trabalho do Brasil
córrego do feijão virou um velório permanente
familiares enterraram pedaços de corpos
em caixões lacrados
trabalhadores despedaçados pela lama da Vale
quebra-cabeças da barbárie capitalista
Brumadinho parece um cenário pós-guerra
e não é coincidência
O trabalho é uma guerra
um massacre
Famílias refugiadas das barragens
crianças órfãs
de guerra
O trem que leva a terra do Drummond pra Alemanha
leva pedaços de corpos de trabalhadores
assassinados por seus patrões numa guerra
Estranha guerra em que só um lado perde soldados
mesmo tendo o maior exército
Eis aqui tudo que tenho
meu único bem
minha única herança:
meu corpo
sobrevivente de guerra
jurando vingança