Poemas de Edmilson Borret

Trazemos a poesia de Edmilson Borret, autor de Entre cão e lobo, e, em 2019, o livro de contos Diário dos vivos & outros escritos, ambos pela Editora Penalux. O poeta, amante da fotografia, consegue não só falar como dois olhos mas tangibilizar momento e sentimento de forma singular.

O sereno de tudo

O sereno de tudo não recobre: encobre.

É umedecimento de dentro, feito o feminil.

Não é só da madrugada o sereno de tudo:

não tem tempo. Incrustra-se na substância

porosa da vida brotada de poços artesianos.

E da fundura e do dentro ganha tudo o que

vivo permanece e o que um dia permaneceu.

Vai rumoreando entre o céu e as pedras

e se compadece da secura original de tudo.

Não se coleta em lâminas ou balões de vidro

o sereno de tudo. Não há novidade!

O sereno de tudo inventou a invenção

maior de todas as invenções: o desejo.

Bolor

nesse canto de sofá você

na performance da esquiva

na métrica da deriva

as cortinas estão cerradas!

o todo (faz parte) –

metonímia pura: mente

nada do que foi dito

sentido ou lambido

terá valor de contrato

julguei ser bolor

a mancha branca no tapete de sisal:

só seus pés que aqui estiveram

[nuit blanche]

a aurora dizimou os vultos

mas não a fome

a longa jornada produziu água

no canto dos olhos

nos poros

o corino grudado às costas

e às bolas

um dia de chumbo a arrastar

sangrando os tornozelos

os deuses de caeiro não se pensam

o de nietzsche está morto

tudo mais ou menos igual

nada sacia!

toda palavra tem um peso

que estabelece um vazio

cavado entre ela

e os amanheceres

 

nele nos arriscamos à inanição

Ilhado

 

Uma vastidão de água

formou-se ao meu redor

Esboço espasmos

que ninguém mais vê:

estão todos a quilômetros

Subo no mais alto cume

e o que me vejo é lonjura

Desço pela corda das dores

que minha falta de asa inventou

Monólogos de ilha: uma saída

Enquanto aprendo

a empilhar fogueiras

com pedras e silêncios:

ardem altas as labaredas

das lembranças

quartel de abrantes

o inculto o incauto

a contralto o traveco

o eco o narciso o sísifo

a rosca quente aos berros

o arremedo de pensador

que pensa – só pensa

a cantora lésbica

que acha tudo tão déjà vu

o jovem e belo rapaz

que já leu tudo de Nietzsche

e conhece a vida como ninguém

o lugar de fala que fala

e fala e falo nada

a autoficção a autofelação

o salamê minguê colorê

o vídeo caótico coisa

de outro mundo feita

neste mundo que de tão

banal chamam caótico

a exposição o filme o sarau

a perna de pau a praça o beco

os ladrilhos a maconha o circo

o depósito a terra brasilis

a cinemateca a xota peluda

daqui a um peido novo

será que a lista muda?

Périplo

Desiste não – você falava. E eu não desistia, porque você falava.

Mas o olho ardia de areia e de perder de mãos no vento.

Depois de um tempo as mãos se viam de novo. Você nunca desistia.

E então eram as montanhas… maiores que a gente:

você tinha a coragem dos aviões e das estrelas.

Eu nunca entendi o que era ter coragem – não berrei ao nascer.

Meu pai nunca me ensinou a andar de bicicleta por causa

dessa minha deficiência: ele cismava que eu não  doía.

Lá de cima a gente via o vale. Desiste não – você falava.

E fazia promessas de choupanas e de terra boa onde

cresceríamos galhos. Assim como as figuras dos livros

que você me mostrava e eu entendia mais que as palavras.

Embrenhamos na descida pela mata e eu quase perdia você

de novo: seu cheiro era tão verde e molhado que me confundia.

Você era de uma natureza invejável!

Hoje quando me lembro dos desertos, das montanhas, das matas

e do quanto você nunca desistia, sinto uma profundidade de poço

na alma. Como quando a gente aprende a ler e entende palavras

como coragem e saudade. Desiste não – você falava.

Edmilson Borret, 52 anos, tem duas graduações em Letras pela Universidade Federal Fluminense e atua, há 25 anos, como professor de Língua Portuguesa da rede municipal de ensino do Rio de Janeiro. Publicou, em 2018, o livro de poemas Entre cão e lobo, e, em 2019, o livro de contos Diário dos vivos & outros escritos, ambos pela Editora Penalux. Tem textos publicados no site “Cidadão Cultura” e nos suplementos literários “Ameopoema” e “Revista Acre”.

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