Há muita diferença entre viver e sobreviver. Viver manifesta a grandeza, a totalidade de nosso ser. Sorvemos bons e maus momentos com força e fé. Encaramos o trabalho como oportunidade de autorrealização, algo semelhante à arte, que nos traz respeito e autoestima. Sobreviver é apenas manter-se vivo biologicamente, mantido na matéria, alimentando-nos e sustentando-nos sob o peso de um jugo, um castigo, que em nada satisfaz a nossa alma. Somos sobreviventes quando continuamos vivos, depois de uma situação desastrosa.
Quando um vírus diabólico, coroado de pequenos fungos, atravessa nossos pulmões e nos sufoca, transformamo-nos todos em sobreviventes. Errantes sobre a Terra, em meio a um tiroteio cego.
Quem como o poeta paulista Cassiano Ricardo (1895-1974), um dos líderes do movimento da reforma literária iniciada na Semana de Arte Moderna em São Paulo, penetrou mais fundo na trágica ideologia da sobrevivência? Quem conheceu melhor do que ele esses “seres mascarados de vivos, subvivos, portadores de lesão ou ferida transcendental, que trazem a presença compulsiva do tempo?” Quem melhor traduziu o drama dos habitantes sofridos de passagem pelo planeta, os subprodutos da ameaça de um mundo pós explosão da bomba atômica? Tudo isso, segundo Eduardo Portella, está presente no livro-poema Os Sobreviventes, publicado em 1971. Cassiano nos mostra que em todos os cantos instalou-se o sentimento do medo, a consciência de uma ameaça mortal. Nesse processo, nesse sistema, aglomeramo-nos numa multidão ao mesmo tempo solitária e fraterna. É preciso se dar as mãos para furar o nevoeiro da sobrevivência. Uma solidariedade definitiva, exercida na prática da esperança, do renascimento, de um despertar espiritual. Como são atuais estes versos: “Hoje, afinal, somos todos irmãos, por sermos todos sobreviventes, globalmente, isto é, no globo.” Há “escaras sob as máscaras, capricho que ao fim se joga no lixo.” Porque “a máscara da fome é cubista, totêmica, polêmica, imagem daquele que cobre dois terços do rosto do globo.”
Que profética essa obra! Imagens impressionantes! Como soube converter a crise em palavra poética. Cassiano relembra o lançamento das bombas atômicas sobre as cidades de Hiroshima e Nagasaki (6 e 9 de agosto de 1945), forma extrema utilizada pelos Estados Unidos para forçar a rendição japonesa no contexto do final da Segunda Guerra Mundial. Primeira vez que armas nucleares foram usadas em guerra: “Fabricam-se mais bombas do que se criam pombas nos pombais”, declarou o poeta perplexo.
Imagine-se a nuvem de fumaça que despencou sobre Hiroshima. O clarão de luz alaranjada, parecendo um estranho cogumelo com talo e chapéu, soltando destroços, fagulhas sinistras. Casas ardiam, peles se soltavam dos corpos produzindo fileiras de esqueletos brancos. A violenta radiação queimou o solo numa grande e profunda cicatriz. Depois, a cinza baixou sobre os navios do porto, espirrando urânio.
O mundo passou a pertencer aos sobreviventes de uma época que terminara; de um abrigo antiaéreo que nos permitiu acordar de manhã; de uma máquina fatal da qual bastava apertar um botão para fazer tudo voar pelos ares; de fatos que envergonham quando nos olhamos no espelho; de um disco voador maligno que passou sobre nossas cabeças destilando veneno químico. Os sobreviventes habitavam agora um espaço imaginário, um palco de terror. Tornaram-se sobrenaturais.
Mais tarde, o poeta Vinícius de Moraes (1913-1980), num protesto contra o uso da bomba, utilizou a metáfora da rosa para descrever a destruição causada pelo homem, deixando um rastro de desespero por gerações: “A rosa hereditária, radioativa, estúpida e inválida, a rosa com cirrose, a antirrosa atômica, sem cor, sem perfume, sem rosa, sem nada.”
A sobrevivência é uma função da vida. Neste contexto em que um vírus prepotente nos persegue sem trégua, fazendo morada dentro de nós e do outro, caminhamos para um impasse. É nesse ponto que se abrem brechas, veredas para novos vales. Ansiemos, como escreveu Cassiano Ricardo, pelo dia em que novamente “pudermos nos abraçar com asas de garça.”