“É certo que é a ação da classe e seus frutos, em forma de rosas, que agita o peito do poeta e que faz sua poesia aflorar a olhos vistos….
Arte e Literatura na América Latina
Há uma vitrola.
Na vitrola um disco
girando sob a agulha,
mas o som não sai.
Sei que é um disco inédito, que
contém grandes composições
e cada faixa
será inesquecível.
Encontrarão nele
a expressão mais bela
e necessária
desse tempo mudo.
Sei de tudo isso,
pois só de aproximar os ouvidos da vibração da agulha,
todo corpo vibra
nos relevos do vinil.
Há uma vitrola.
Na vitrola um disco
girando sob a agulha,
mas o som não sai.
As caixas de som
estão bem encaixadas.
O botão do volume
está bem ajustado.
A energia elétrica
passa em abundância…
Mas o som não sai.
Camaradas, tenho que lhes dizer isso!
Há uma vitrola.
Na vitrola um disco
girando sob a agulha,
e suas faixas contém
belezas indescritíveis,
inesquecíveis e necessárias…
Mas, por enquanto,
é impossível escutá-las.
Encaro a poesia como um ofício
qual o antigo sapateiro encara
os sapatos de sua oficina.
Ele, entre o cheiro de couro e cola,
colore os moldes com a costura fina,
e martela e reforça o lado da sola.
Um sapato deve ser delicado
para atravessar o ar como pássaro.
Um sapato também deve ser bruto,
para alavancar do chão mais um passo.
Meu poema vem do mesmo trabalho,
de fundir pétalas e metais duros:
para amolecer mãos de operários
e como uma bala atravessar muros.
Ela bate seu pandeiro
Como quem busca um abrigo
Ela soa as platinelas
Como um pássaro em perigo
Ela tira o grave do couro
Como quem abate um mamífero
Ela bate seu pandeiro
Como quem tem algo a dizer
Ela soa as platinelas
Como quem sabe o que fazer
Ela tira o grave do couro
Como quem se reconhece no couro
Ela bate seu pandeiro
Como quem opera uma máquina
Ela soa as platinelas
Como quem bate sua meta
Ela tira o grave do couro
Como quem teve seu couro tirado
Ela bate seu pandeiro
Como quem anuncia uma revolta
Ela soa as platinelas
Como quem espalha uma notícia
Ela tira o grave do couro
Como quem dá sentido ao couro
Ela bate seu pandeiro
Como quem chama para briga
Ela soa as platinelas
Como quem põe por terra
patrões e panelas
Ela tira o grave do couro
Como quem fuzila o carrasco.
Lá no futuro,
profundo horizonte róseo
da aurora dos trabalhadores
viveremos, eu e você.
Lá, no tempo dos homens,
de homens fazendo coisas,
não esse avesso absurdo
de aço, plástico e carne.
Onde o trabalho sem segredos
não espalha a miséria
e a total incompreensão.
Apenas trabalho e gozo do seu fruto.
Lá, um dia acordarei descansado
de um sono que nunca tive.
E tomado por uma animação,
desconhecida da que tenho agora,
irei à associação livre
dos trabalhadores livres das perfumarias,
onde decidem, pelos bons olfatos,
qual a melhor fragrância para cada ocasião.
E enquanto amasso pétalas
para extrair seu potente sumo,
pedirei uma recomendação:
“Qual a melhor fragrância para os dedos de um tocador apaixonado?”
Nesse dia, como tantos outros por lá,
passarei na associação livre dos violeiros-poetas
e me inscreverei para a noite de serenatas,
nesse mesmo dia – como tantos outros por lá,
te aguardarei a tarde toda ensaiando,
cunhando versos, emprestando melodias,
ganhando outras. Tão belas
quanto o cheiro no frasco secreto.
Quando você chegar sem as olheiras que lá nunca teve
vai sorrir ao me ver de viola na mão.
E o perfume dos dedos exalados na canção
chegarão a ti como um encanto.
“Estás apaixonado de novo?”
Dirá, enquanto me beija o pescoço.
E riremos um riso que nunca rimos
O riso inocente dos encantamentos
Que lá não enganam. Nem se quisessem.
Daniel Lage é operário na área de tecnologia da informação, educador popular, sambista, militante e poeta. Habitante da pauliceia desvairada há quase vinte anos, é natural de Ribeirão Preto. Cientista social, mestre em Ciência Política, foi professor do ensino superior privado durante três anos, sem nunca abandonar o ofício na área tecnológica. Músico, fincou bandeira no samba paulista, e compõe o grupo de samba Esperando o Trem, como compositor e violonista, além de participar de festivais e projetos nesse terreiro. É educador popular do Fórum Nacional de Monitores – 13 de Maio, atuando na formação política de movimentos populares e sindicatos. Escritor, abandou as publicações de gaveta para em 2021 lançar seu primeiro livro de poemas “Florações”, pela editora Trunca. O livro está à venda no site www.trunca.org