Entre o íntimo e o social: em segundo livro, Danilo Brandão discorre sobre as feridas latentes do Brasil
Publicado pela editora Mondru, “Até a Última Gota” traz quatro contos sobre um país visível apenas a quem se presta a enxergá-lo.
Arte e Literatura na América Latina
Publicado pela editora Mondru, “Até a Última Gota” traz quatro contos sobre um país visível apenas a quem se presta a enxergá-lo.
“Em meio ao turbilhão de nossas vidas, acumulamos cicatrizes que carregamos silenciosamente. Histórias, obrigações e responsabilidades de realidades que se impõem a nós. O jovem e sensível escritor experimentou diferentes portas da escrita em contos que permeiam essas histórias ocultas, que para o bem ou para o mal, moldam as pessoas que nos tornamos.”
Trecho do livro “Até a Última Gota”
Lançado pela Editora Mondru, “Até a Última Gota” (128 pág.), segundo livro do escritor e jornalista paulistano Danilo Brandão, é um mergulho honesto nas profundezas da vida das pessoas ao longo de quatro histórias cruas e autênticas. É metódico e audaz quando expõe a intimidade de seus personagens em casos que remetem ao que o Brasil se tornou nos últimos dez anos, jogando sobre a mesa discussões não apenas atuais, como também pertinentes, perpassando temas como desigualdade social, crise dos refugiados, machismo e transfobia, que se cruzam com questões intimistas como o luto, desejo e rancor. As narrativas que compõem a coletânea se encontram no conflito entre os dramas pessoais de suas protagonistas e os problemas que estão na ordem do dia da sociedade.
Entre os devaneios e crises de um repórter a trabalho em Boa Vista, capital roraimense; o reencontro inesperado de uma filha trans com o pai que a abandonou, na linha vermelha do metrô em São Paulo; uma busca pessoal que atende a um chamado nas ruas e casarões históricos de Ouro Preto (que evoca vida e obra da poetisa americana Elizabeth Bishop) e a expiação da marginalidade de garotas viciadas em Aparecida do Norte, no interior paulista, o escritor evoca dramas pessoais e familiares e coloca o leitor cara a cara com um Brasil do qual todos temos conhecimento, mas que insistimos em negligenciar, confrontando-nos com essas realidades.
Para formular a obra, Danilo refletiu consigo mesmo sobre as possibilidades que a escrita oferece. A forma de cada conto é simbiótica com seu conteúdo, com as incertezas, solidões e investigações que o autor perscruta. Os estilos, a identidade visual e texturas do livro são parte dessa experiência que Danilo traçou para “Até a Última Gota” — que funciona como uma observação do dia a dia de pessoas normais. De gente que poderia viver em seu prédio, do colega de trabalho, ou um conhecido da igreja. Não à toa, sempre existem figuras em torno de seus personagens – conhecidas, completas estranhas ou uma mistura disso. É como dar uma espiada pela janela da vida do vizinho, onde descobrimos amarguras comuns a todos, sofrimentos e preconceitos que convivem com as máscaras de uma rede social, de um casamento ou nos mais brutais dos casos, desprovidos de filtros.
Danilo usa frases soltas e curtas para convidar a imaginação do leitor a desenhar cada cena e encontro. E elas vêm à mente de maneira natural, já que são tratados temas ‘quentes’ e contemporâneos, mas sob a perspectiva de quem sente na pele. “A literatura é uma fresta. É uma pequena rachadura pela qual podemos enxergar as questões humanas. Por isso, o que eu mais gosto de fazer é deixar essa fresta aberta. Dar todo o poder para o maior agente da literatura escrever a sua própria história: o leitor. Para isso, eu construo histórias que costumam ser fragmentárias, com frases soltas e curtas. Com descrição ilimitada e que tenha uma certa carga de subjetividade”, explica Danilo.
Confira um trecho do conto “O iceberg nos atrai mais que o navio mesmo, acabando com a viagem”:
“Em algumas noites, se aventurou pelos bares. Bebeu cachaça, comeu feijão tropeiro, fumou cigarro de palha e limpou seus vômitos de banheiros encantadores. Descansou seu cotovelo nas costas de homens duros, moles, adiposos, peludos, tísicos, frágeis, doentes, saudáveis, muito ricos, coxos, amarelos, tarados, hemofílicos, órfãos e históricos. Sabia que cada um deles tinha uma história. Mas, não quis saber de nada disso. Queria apenas se servir um pouco de descontração.”
Danilo Brandão nasceu em São Paulo, em 1996. Estreou na ficção com o livro de contos Tempos ainda sem nome (Editora Urutau, 2022). Até a última gota (Editora Mondru, 2023) é o seu segundo livro. Já publicou contos e reportagens em diversas revistas, sites e jornais especializados em literatura. Entre eles, Revista Piauí, Revista Gueto, Revista Lavoura, Jornal Relevo, Ruído Manifesto, etc. É formado em Jornalismo pela Universidade Estadual de Londrina e faz mestrado em Literatura pela Universidade Federal de São Paulo. Atualmente vive em São Paulo e trabalha como redator e roteirista.
O autor tem como principais referências literárias os autores Ariana Harwicz, André Sant’Anna, Thomas Bernhard Lourenço Mutarelli, Elvira Vigna, Veronica Stigger, Raduan Nassar, Clarice Lispector, Silvina Ocampo, Ricardo Piglia e Jorge Luis Borges. Cada conto de “Até a Última Gota” dialoga com uma obra específica: as cartas de Elizabeth Bishop, “O pai da menina morta”, de Tiago Ferro, “Os cus de judas”, de António Lobo Antunes e “Testemunho transiente”, de Juliano Garcia Pessanha. “Os quatro contos partem de imagens, versos, vozes que estão dentro desses livros. É uma tentativa de diálogo/resposta.”
Para o autor, literatura é sempre a fórmula “forma+conteúdo”. Nunca o contrário. Por isso, os temas aparecem porque o formato aceita. Claro, como autor estou inserido em uma sociedade que discute esses temas. É mais fácil encaixá-los em meus textos. Eles aparecem de forma quase natural nas falas dos meus personagens, em suas questões internas. Tudo fica muito natural. Os medos, preconceitos, paradigmas deles são os que escuto por aí. Estão em jogo. E devem ser discutidas”, frisa.
“Gosto de construir um processo para cada livro que vou escrever, para cada história. O meu processo é justamente se preocupar com os processos. Estudar novas formas de escrever, partindo de uma fotografia, uma música, um poema. Um frame de um filme. Vale tudo e eu já tentei muitas coisas. Mas nunca será igual a anterior”, conta Danilo, que para seu novo livro usou processos de criação distintos para cada conto, em uma espécie de performance.
“Tem um que parti de uma imagem e escrevi sem nenhuma pausa, um processo de tentativa de mimetizar a escrita automática. Outro que planejei escrever uma página por dia. Sempre partindo de uma frase de um poema, o desafio era tentar unir a partir do fragmentário, deixando frestas para o leitor completar. Em outro parti da leitura de um livro inteiro e tentei dialogar cada capítulo como uma espécie de resposta a afirmações desse livro. E por aí vai”, explica o escritor, que tem em seu horizonte um primeiro romance, além de uma peça para teatro e um roteiro de produção audiovisual (em curta-metragem).