Contos de Paulo de Toledo

Paulo de Toledo trabalha com e para a literatura. Professor, mestre e doutor pela USP, é também escritor em franca produção, seja publicando ou colaborando com diversas revistas literárias do país. É com imensa satisfação que trazemos alguns de seus contos para nossos leitores. 

 

VERTIGO

Mas se apenas me resta o nada (que, pra alguns [Pessoa, p. ex.], é o sumo de tudo) e este vidro sujo da janela do último andar (diga-se, 33º), o jeito é quebrar o hialino silêncio com um grito de misericórdia nas têmporas do vácuo e submeter-me kafkianamente à lei da gravidade, descendo os lances eólios da escala monótona do vento.  

Mas se o chão é o limite e o céu está sempre lá (sempre azul ou negro, sempre com nuvem ou lua, basta alçar os olhos, desde que não seja cego, é claro), e praquele passarinho o alto e o baixo não dizem muita coisa, e pra baixo todo santo ajuda, ou, pelo menos, não atrapalha, o jeito é fixar definitivamente os olhos naquele elefante alado, meio Dalí, meio Disney, desenhado naquela nuvem cinzazul e, como diria um amigo meu, ex-paraquedista do exército, hoje aposentado por invalidez, e que era de um positivismo radical: “Carpe diem.” 

Mas (só de imaginar, me dá vertigem!) se eu desistisse de tudo (o tudo em questão é uma questão de ponto de vista) e decidisse ficar de olho (como se estivesse numa sala de cinema, acompanhando ininterruptamente um filme depois do outro, depois do outro, depois do outro) o dia inteiro (ou até que a morte ou o The End nos separe) naquela matissiana dama de vermelho que ora pousa (não posa, modelo de malogro) como uma estrela (dessas elegantemente decadentes) no enquadramento da janela?  

Mas, façamos um parêntese, pena que só se comece a perceber que se está voando quando começa o voo a chegar a sua finalidade sem fim. 

PELO ESPELHO

Às minhas costas, ela. Gostosa costela bem servida de carne, mas igualmente de pelos, com os quais meus dentes se distraem por horas, seguindo-se a higiene das pequenas cusparadas sobre a alva seda do lençol. 

 Depois de todo o desperdício de suor e seiva, vem o sono sob o edredom azul-marinho, que balança qual ondas preguiçosas sobre seu corpo, e mal posso continuar mirando, marinheiro mareado ante sereno canto, sonar ressoando baixinho, e eu aponto o ouvido às suas costas, conto o bater das pálpebras dos seus sonhos, estampido de lenços brancos acenando para uma inevitável despedida. 

O espelho, ímã das ilusões de amor inseminadas naquele quarto, revela a porta semiaberta (irmã de suas pernas) e o negrume que ocupa toda a casa para além do cômodo iluminado pelo caro abajur cor de carne. 

A manhã teima em não vir. Melhor assim. Partir pra sempre demanda tempo, ânsias, artimanhas, cálculos e manhãs de sol (partir na chuva confunde as lágrimas). 

Ataco-a pelas costas, pela última vez, estocadas rápidas com o ânimo de quem gera o primogênito, e ela, rindo dolorosamente, sacode as costelas que, num dia primevo, acreditei minhas, tão-somente minhas.  

Agora, contudo, parto, dou às costas ao espelho e, aliciado pelo reflexo do sol nos óculos escuros, zarpo em meio à fumaça dos escapamentos e observo pelo retrovisor os alvíssimos lençóis em despedida no varal da memória. 

O VARAL E O TERROR

A brincadeira era “reizinho manda tudo”.  

Os “reizinhos” eram o Beto (15 anos) e o Zé Luiz (14 anos). Os súditos obedientes éramos eu (10 anos), minha irmã, Vivian (7 anos), o Adílson (11 anos) e a Cristiane (7 anos), irmã dele. A brincadeira consistia em os reizinhos mandarem a gente fazer coisas e, quem cumprisse a ordem mais rapidamente, ganhava o jogo. 

Estávamos na casa do Adílson, vizinha da minha. Os reizinhos estavam na casa do Zé Luiz, vizinha da do Adílson. O Beto e o Zé ficavam na escada da casa e falavam com a gente de lá, ou melhor, mandavam na gente de lá. O jogo se dava no quintal do Adílson, que era composto por uma passagem de cimento e um gramado que se estendia do muro, que separava a minha casa da dele, até aquela passagem de cimento. 

Os reizinhos mandaram a gente pegar uma plantinha perto do muro. Todos nós corremos até lá. Mas eu não percebi que havia um cordão de varal mais baixo e enrosquei o pescoço no fio, o que projetou meu corpo para trás. Bati a cabeça no chão. Se tivesse um pouco de sorte, cairia no gramado. Mas, não. Caí na passagem de cimento. Quando levantei, meio tonto, todos à minha volta estavam pálidos. O Zé disse, quase gaguejando: “Paulinho, vai pra casa.” Senti algo escorrendo nas minhas costas. Pus a mão na cabeça e meus dedos estavam vermelhos. Minha irmã saiu correndo apavorada para a nossa casa. Quando cheguei lá, minha tia (na verdade, tia do meu pai), que cuidava da gente enquanto minha mãe ia trabalhar de faxineira, já me esperava. Logo, me colocou embaixo do chuveiro e, depois, me levou a uma farmácia onde, um homem desconhecido, vendo a minha situação lamentável, se ofereceu a nos levar ao hospital. Lá, tomei vários pontos na cabeça. O que aconteceu depois disso, não me lembro. O que sei é que nunca mais quis brincar de “reizinho manda tudo”.  

Anos mais tarde, numa aula de História, a professora falava da Revolução Francesa, do Terror e o que produziu de sangue a invenção de Joseph-Ignace Guillotin. 

Naquela aula, descobri que, quando os homens brincam de “reizinho manda tudo”, eles invariavelmente enroscam os pescoços no cordão do varal e caem, sempre para trás, chocando-se contra o chão duro da nossa mais profunda estupidez.  

sobre o autor

Paulo de Toledo é mestre e doutor em Literatura Brasileira pela FFLCH-USP.  

Poeta, publicou os seguintes livros: Torrão e outros poemas (Ed. Patuá, 2018), Concreróticos e Outros Versos (Dulcinéia Catadora, 2012), A Rubrica do Inventor (Ed. Multifoco, RJ, 2011), Hi-Kretos e Outras Abstrações (Sereia Ca(n)tadora, 2011) e 51 Mendicantos (Ed. Éblis, 2007; Ed. Amotape, 2013).  

Participou também dos livros Musa fugidia (Ed. Moinhos, 2017), VAIEVEM (Binóculo Editora, 2011) e LulaLivre*LulaLivro (Fundação Perseu Abramo, 2018).  

Colaborou com poemas, traduções, contos e ensaios para: Revista Babel, Meteöro, Cult, Revista Ciência & Cultura – SBPC, Coyote, Artéria, Revista Opiniães, Musa Rara, InComunidade, Correio das Artes, Suplemento Cultural de Santa Catarina, entre outros.